Filipe Matheus

SOBRE A QUESTÃO DE GÊNERO NO ENSINO DE HISTÓRIA: OLHARES ACERCA DO IDEAL DE MULHER EM ATENAS

Filipe Matheus Marinho de Melo



A questão acerca das discussões sobre gênero - principalmente a discussão sobre o ensino de gênero - foram recentemente no Brasil, ganhando proporções que não apenas se detiveram nos debates do meio acadêmico ou nas conversas "intelectualizadas", mas invadiu as redes sociais mostrando uma gama de opiniões, contra e a favor no que se refere a inserção da questão do gênero na sala de aula. Seja de pais, futuros pais, professores, diretores. O ano de 2015 nos mostrou, principalmente nas redes sociais, que o que se conhece sobre o gênero está demasiadamente pautado na dicotomia entre masculino e feminino. Mas a questão é: será mesmo tão ruim tratar sobre gênero na sala de aula?

Segundo Joan Scott, gênero é "uma maneira de indicar as 'construções sociais'", ou seja, "é uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado" (SCOTT, 1989, p. 7), dessa forma, o gênero é baseado nas diferenças entre os corpos sexuais "masculino" e "feminino". É nesta diferença que este texto está proposto a tratar. Nas diferenças que foram criadas entre homem e mulher, macho e fêmea. Portanto, nos concentraremos na Grécia Clássica - por volta dos séculos VI a.C. ao IV a.C. - momento na qual se fortificou (ou pelo menos se tentou fortificar) uma ideologia de repressão que tentava buscar um modelo ideal de mulher chamado: mélissa ou mulher-abelha.

Desde o Período Arcaico, Hesíodo (Teogonia, vv. 590-593) ensina que a mulher é um mal, na qual Zeus condenou a raça dos homens: "pois a raça dela é ruinosa, as tribos de mulheres, grande desgraça aos mortais". Entretanto, a mulher se torna um mal necessário, pois quem "não quiser casar, atingirá velhice ruinosa carente de quem o cuide" (HESIODO. Teogonia, vv. 604-605). O ideal mélissa ou mulher-abelha, também é confirmado por ele: "Como quando abelhas, em colmeias arqueadas, alimentam zangões, parceiros de feitos vis" (HESIODO. Teogonia, vv. 594-595). De certa forma, desde o Período Arcaico, Hesíodo já estabelece e ensina a função, por assim dizer, que é intrínseca a "raça" das mulheres. Segundo ele, as mulheres "parem filhos semelhantes aos pais" (HESIODO. Trabalho e Dias, vv. 235). Essa função é confirmada em demasia na documentação do Período Clássico, seja ela imagética ou textual, a mulher ideal é aquela que fica retida ao oîkos para administração e cumprimento de seu papel na pólis: gerar filhos homens.
Fábio Lessa (2010, p. 46) em seu Mulheres de Atenas, organiza um quadro explicativo acerca das dualidades existentes entre homens e mulheres, ou seja, das diferenças que compõe ambos os corpos sexuais. Segundo este autor, aos homens, por exemplo, se destina "força, trabalho, sol, exterior", já para a mulher, "fertilidade, repouso, lua, interior". Dessa forma, podemos persistir na ideia de que havia uma ideologia repressiva sobre as mulheres, sobretudo, as mulheres bem-nascidas.

Segundo Foucault (2014, p. 8), "a repressão funciona, decerto, como condenação ao desaparecimento [...] injunção ao silêncio, afirmação de inexistência [...] uma constatação de que não há nada para dizer, nem para ver, nem para saber". Tal afirmação se encaixa na lógica do modelo mélissa, pois, ao procurar uma mulher para casar-se, o homem deveria escolher uma mulher - que estivesse por volta de seus 15 anos -  que se afirmasse como total inexistente para a sociedade ateniense. Em seu Econômico, Xenofonte nos insere em um diálogo entre Sócrates e Iscômaco, sendo este último tido como um exemplo de cidadão ideal. No decorrer do diálogo Sócrates questiona Iscômaco sobre como selecionar uma mulher para casar, e o cidadão responde: "não tinha ainda quinze anos, e, antes disso, vivia sob muitos cuidados para que visse o mínimo, ouvisse o mínimo e falasse o mínimo" (XENOFONTE. Econômico, VII-5). O que a documentação nos informa acerca da educação feminina era que a moça ficasse retida em casa como sua mãe e aprendesse o tear e os atributos do lar, até que atingisse idade para casar. Pois, "o deus preparou-lhes a natureza, a da mulher para os trabalhos e cuidados do interior" (XENOFONTE. Econômico, VII-22). Sobre a tecelagem, a literatura nos informa que tal atributo era essencialmente feminino: "Para teu quarto recolhe-te e cuida dos próprios lavores,
roca e tear" (HOMERO. Odisseia, vv. 356-357) se dirige Telêmaco à Penélope ou "fico fazendo tricô enquanto a assembleia enche" (ARISTÓFANES, Revolução das Mulheres, p. 76) se pronuncia a personagem "2ª mulher" na comédia de Aristófanes.

Em Apologia da História, Marc Bloch (2001, p. 78-79) ensina ao historiador uma maior e mais rigorosa observação dos documentos, porque eles "não falam senão quando sabemos interrogá-los" e que nos afeiçoamos pelo que "ele nos deixa entender, sem haver pretendido dizê-lo". Por mais que a documentação textual e imagética persista em exemplos do modelo mélissa, há críticas que devem ser feitas a tais documentações. Fábio Lessa (2010, p. 21) alerta para o que ele chama de "desvios a esse padrão e comportamento a ser seguido pela esposa bem-nascida". O que é facilmente encontrado na literatura, pois, "o artista, sob impulso de uma necessidade interior, orienta-o segundo os padrões de sua época, escolhe certos temas, usa certas formas e a síntese resultante age sobre o meio" (CANDIDO, 2014, p.31). A comédia grega tinha por função, além de despertar o riso, criticar e ridicularizar os acontecimentos na pólis de seu tempo e tinha em Aristófanes um grande comediógrafo crítico e conservador dos ideais tradicionais. Entretanto, se olharmos atentamente para suas comédias, veremos o desvio ao modelo feminino que a documentação não informa.
Já se foi explicado que o modelo mélissa tem por dever prezar para a administração do oîkos e, portanto, ficar retida ao interior, enquanto o exterior é próprio ao homem. Todavia, vemos em Aristófanes que as mulheres dormiam na casa das outras, se ajudavam mutuamente em seus afazeres e até ajudavam as amigas no parto. "E se dormimos na casa de outros por brincarmos e estamos cansadas, todo tipo procura o mal dando voltas em torno da cama" (ARISTOFANES. Tesmoforiantes, vv. 795-797), relata o Coro; ou até mesmo na fala de Blêpiro quando não encontra sua mulher em casa: "Que negócio é esse? Aonde terá ido minha mulher? O dia já vem raiando e ela não aparece", e tem como resposta de Valentina: "A noite passada uma amiga minha me mandou chamar, pois estava para ter criança" (ARISTOFANES. Revolução das Mulheres, p. 223-357). É possível constatar tais desvios não somente na literatura, mas também na documentação imagética, pois, há representações de mulheres indo às fontes para pegar água ou colher frutos. Ora, para manter o oîkos em funcionamento era necessário que as mulheres saíssem de casa. Se analisarmos mais a fundo a quantidade de documentos que insistem na passividade e exclusão da mulher do mundo externo, chegaremos na conclusão de que se há tanta insistência em um modelo a ser seguido, decerto esse modelo não era seguido à risca como a documentação nos faz pensar. Por isso é importante saber interrogar o documento e, principalmente, saber o que interrogar.
Então, será tão ruim tratar de gênero na sala de aula? Podemos ir mais além: há uma história das mulheres? Sabemos que atualmente há uma amplificação do conceito de gênero que não permite mais a redução da dicotomia masculino-feminino, mas há diversas categorias entre tal dicotomia. Percebemos que a escola não consegue, hoje, tratar da mulher como um sujeito histórico. Abrimos livros didáticos em que o conteúdo de Grécia se refere ao homem ideal, à filosofia, à mitologia, mas não às mulheres. Elas não estavam presentes? Ou quando se trata das mulheres, os livros apenas fazem reproduzir o modelo mélissa, que como vimos é uma ideologia de repressão que há seus desvios e que não é uma "verdade absoluta". Também tratam da mulher e não das mulheres. O que é um grave erro, pois reduz as mulheres apenas a uma categoria: a bem-nascida. Quando na verdade temos as cortesãs, as prostitutas, as mulheres pobres que saiam de casa para ajudar no sustento. Ainda temos para apresentar as Thesmophórias, um festival que era essencialmente feminino e que estava ligado à agricultura e ao culto as deusas Deméter e Perséfone. Além de documentos arqueológicos que certamente prendem muito mais a atenção dos alunos que palavras em um quadro branco.

Em História na Sala de Aula, uma obra organizada por Leandro Karnal (2007), há dois capítulos que são essenciais para finalizar este trabalho e que servem como reflexão aos professores de profissão e aos professores que organizam materiais didáticos. O primeiro trata sobre da "História Antiga" e foi escrito por Pedro Funari, na qual, este propõe uma renovação no ensino de história antiga, tido muitas vezes como enfadonho, cansativo e distante de nossa realidade. Já o segundo, escrito por Jaime Pinsky e Carla Pinsky, discorre sobre "O que e Como ensinar" História.

Segundo Funari (2007, p. 100), "em um mundo em que as mulheres têm cada vez mais sua atuação na vida social posta em evidência, a apresentação das mulheres e das relações de gênero apresenta interesse evidente", então, por que negligenciar as mulheres? Desde fins do século XX as vozes feministas lutam por direitos. Por que não trazer esses debates para a sala de aula? Por que não fazer as meninas e as adolescentes se sentirem tão parte da história como os meninos? A renovação do ensino de história antiga não somente possibilita aos alunos verem monumentos, vasos e representações mitológicas por meio de instrumentos tecnológicos, mas permite denunciar que os problemas do presente também estiveram no passado e que a história antiga não é tão distante de nós. Por que não mostrar uma Medeia, uma Lisístrata, uma Hécuba e inserir questionamentos em um trabalho de encenação de teatro ou uma roda de leitura? Isso é renovar, é fazer diferente. Como bem coloca Ítalo Calvino (2007, p. 13), "a escola deve fazer com que você conheça bem ou mal um certo número de clássicos", e são a partir desses clássicos e dessas renovações que podemos mudar a falsa ideia de História Antiga.

Nada do que foi dito até aqui seria possível sem a questão do conteúdo. Se a história como disciplina, como diversos materiais didáticos costumam repetir, trata da formação de sujeitos críticos, como podemos discutir sobre gênero se nem os materiais didáticos e nem os profissionais de ensino se esforçam para dar atenção as pequenas questões sociais? Segundo Jaime e Carla Pinsky (2007, p. 22), "um professor mal preparado e desmotivado não consegue dar boas aulas nem com o melhor dos livros". Mais do que estar preparado para desenvolver renovações no ensino de história, o professor precisa ter conteúdo, precisa ter cultura, pois só assim conseguirá corrigir as falhas que os materiais didáticos possuem e desenvolver, além do espírito crítico nos alunos, a percepção de que cada aluno, independentemente de cor de pele e gênero, é um sujeito histórico.

Referências

ARISTOFANES. A Revolução das Mulheres. Tradução de Mário Kury. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. (Edição Kindle)
______. Tesmoforiantes. Tradução de Ana Maria César Pompeu. São Paulo: Via Leitura, 2015.
BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. 13ªed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2014.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: a vontade de saber. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014
HESÍODO. Teogonia. Tradução de Christian Werner. São Paulo: Hedra, 2013.
______. Trabalho e Dias. Tradução de Christian Werner. São Paulo: Hedra, 2013.
HOMERO. Odisseia. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
KARNAL, Leandro (org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. 5ª ed. São Paulo: Contexto, 2007.
LESSA, Fábio de Souza. Mulheres de Atenas: mélissa - do gineceu à àgora. 2ª ed. Rio de Janeiro: Mauad X, 2010.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. New York: Columbia University Press, 1989.
XENOFONTE. Econômico. Tradução de Ana Lia A. Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes, 1999.


6 comentários:

  1. Olá Filipe.
    Muito bacana seu trabalho! Realizo uma pesquisa de iniciação cientifica que tem como recorte temporal o movimento feminista, então seu trabalho contribui muito para que eu possa continuar afirmando e debatendo da necessidade de se empoderar mulheres através da educação, e como uma metodologia inserir uma história das mulheres, uma história de luta das mulheres.
    Lendo um pouco do seu trabalho exposto também notei como é importante analisar as diferentes sociedades e os diferentes tempos históricos, e debater como o papel socialmente estipulado em diferentes tempos contribui para a nçao naturalização de discursos que dimunuem a posição social feminina, simplesmente pelo seu gênero.
    Parabéns.

    Att

    Samanta Botini

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    1. Olá Samanta.
      Primeiramente, muito obrigado pelo seu elogio. Isso significa muito para mim. Segundo, continue com a sua pesquisa porque ela é uma pesquisa muito importante e amplificar mais ainda nosso conteúdo nos ajuda a sermos melhores naquilo em que pesquisamos e acreditamos. Para qualquer ajuda, estarei a sua disposição.

      att,

      Filipe Matheus Marinho de Melo (filipemarinhoo@gmail.com)

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  2. Olá Filipe.
    Parabéns pelo seu trabalho, ver pessoas tratarem das questões de gênero me deixa muito contente.
    Bom, sabemos que a nosso sociedade determina um certo "padrão de beleza", o que eu gostaria de saber é, se o tipo de "mulher padrão" da Grécia Antiga, influência nos dias de hoje (atualmente)?

    Att,
    Natália Cristiane Oliveira dos Santos


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    1. Olá Natalia
      Primeiramente, muito obrigado pelo seu elogio. Sobre sua pergunta... Bom, os padrões de beleza foram mudando bastante ao longo da história, principalmente no que se refere ao padrão de beleza das mulheres. Elas precisavam ser cortejadas para daí se criar uma necessidade matrimonial, então cada cultura implantava um padrão de comportamento, sobretudo. No caso do modelo ideal grego e padrão de beleza atual, eu não sei te informar ao certo. Até porque a documentação é muito restrita quanto a isso. O que eu posso te dizer é que, uma das exigências femininas quanto a beleza, era ser branca, porque significava que ela era uma esposa que se encaixava no ideal esperado pela sociedade. Ser branca por estar sempre dentro de casa e "nunca" ver o sol. Mas a documentação também informa que elas gostavam de usar colares, jóias, maquiagem (para parecer mais branca) e tinham o espelho como um objeto essencialmente feminino. O que muitos maridos repreendiam porque essa importância para a beleza estava muito mais voltado ao que as prostitutas e cortesãs faziam. Na obra "Econômico" de Xenofonte, Iscômaco repreende sua mulher por ela estar "enfeitada" de maquiagem para parecer mais branca. O que você tem que saber, sobretudo, é que a "mulher ideal" na Grécia Clássica deveria ser tida como uma total inexistente para a pólis, então não seria adequado se mostrar bonita e elegante.
      Não sei se respondi a sua pergunta, mas qualquer dúvida a mais estarei a sua disposição.

      att,
      Filipe Matheus Marinho de Melo

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Olá Filipe, gostei muito do seu texto, trazer a história da mulher é essencial para construção do pensamento sobre gênero na atualidade. Gostaria de saber se você tem alguma pesquisa sobre a vênus de Willendorf (da pré-historia) e acha que essa imagem pode ser utilizada como uma valorização da mulher?
    Ana Karina do Nascimento Zanin

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