João Pedro

POEMA QUE TECE O PASSADO: CONTRIBUIÇÕES DA LITERATURA PARA O ENSINO DE HISTÓRIA

João Pedro Pereira Rocha



A relação ente História e Literatura, muito facilmente, acarreta conflito, que surge de seus respectivos discursos, sobretudo quando a primeira busca aproximações com a segunda. O imperativo em questão diz respeito à dicotomia que pode haver quando o historiador privilegia a literatura em sua análise sobre o passado. Embora a literatura seja uma arte humana, produto de homens no tempo, o conflito diz sobre a natureza ficcional da literatura, que não tem obrigatoriedade com a veracidade dos fatos. Em sentido oposto o historiador caminha em busca de representações alicerçadas em documentos que o aproxima do acontecimento real.

Entretanto, as contribuições da Literatura para o Ensino de História tornam-se ainda mais possíveis quando refletimos sobre o papel da História, na escola. Como afirma Rafael Ruiz, sobre a edificação do conhecimento histórico no meio escolar:

...significa ensinar a construir conceitos e aplica-los das variadas situações e problemas; significa ensinar a selecionar, relacionar e interpretar dados e informações de maneira a ter uma maior compreensão da realidade que estiver sendo estudada; ensinar a construir argumentos que permitam explicar a si próprios e aos outros de maneira convincente a apreensão e compreensão da situação histórica, significa, enfim, ensinar a ter uma percepção o mais abrangente possível da condição humana, nas mais diferentes culturas e diante dos mais variados problemas. (RUIZ, 2012, p. 78)

Seguindo as especificações de Rafael Ruiz (2012), sobretudo naquilo que se refere a uma percepção abrangente da condição humana, pelo estudante em sala de aula, é possível identificar o uso positivo da Literatura nas aulas de história, uma vez que, a literatura permite o contato com possibilidades que não afloradas, em momentos de tensão da História. Para Selva Guimarães Fonseca, a literatura, enquanto elemento social, "... ao problematizar a realidade, oferece ao historiador, ao professor e aos alunos pastas e propostas reveladoras da identidade social e coletiva" (GUIMARÃES, 2012, p.318). Com isso a Literatura pode representar ferramenta importante ao trabalho de professores e estudantes, nas aulas de história.

A partir dessas considerações, o presente texto tem por objetivo fazer um estudo sobre as contribuições da poesia para Ensino de História. Isso será feito a partir da observação e pontuação do discurso literário presente nos escritos de Castro Alves, poeta baiano do século XIX, e crítico declarado ao sistema econômico escravista vigente no Brasil da época. As reflexões e considerações serão feitas a partir de poemas presentes nas obras "Espumas Flutuantes" (1870) e "Os Escravos" (1883).

Castro Alves foi decididamente um crítico às questões de seu tempo, algo perceptível na literatura das obras citadas, onde o autor faz menção a dois acontecimentos marcantes no Brasil do século XIX: a Guerra do Paraguai e a Escravidão de Negros. Em relação ao primeiro a historiografia tem evidenciado ser este um momento importante para a História Nacional, sobretudo pelo caráter nacionalista empreendido nas missões militares, mesmo que em grau embrionário.

Em sala de aula, a Guerra do Paraguai é um tema que o professor de história pode vir a explorá-lo sobre diversas formas, como a partir das possíveis, causas e consequências que determinaram o embate entre nações no Cone Sul. Se o professor de história opta por explorar a realidade da Guerra sob uma ótica mais aproximada da realidade social, interrogando sobre os sujeitos históricos que compunha a formação militar brasileira, certamente encontrará da poesia de Castro Alves um documento de época que aponta para as condições de milhares de soldados. Isso está explicito no poema "Quem dá aos pobres, empresta a Deus", uma crítica ao tratamento dado pelo Estado aos soldados mortos nas batalhas.

E esses Leandros, do Helesponto novo / Se resvalaram - foi no chão da história / Se tropeçaram - foi na eternidade / Se naufragaram foi no mar da glória... / E hoje o que resta dos heróis gigantes? / Aqui - os filhos que vos pedem pão / Além a ossada que branqueia a lua, / Do vasto pampa, no funéreo chão. (ALVES, 2009, p.41)

Outro momento no qual o autor faz referência a Guerra do Paraguai é representado no poema "Ao dois de julho", também presente na obra Espumas Flutuantes. Nele Castro Alves faz menção à batalha naval (Riachuelo) vencida pela marinha do Brasil na Guerra do Paraguai, em 1865. O poema é de 1867.

Ao dois de julho
Basta!... Curvai-vos, ó povo!... / Ei-los os vultos sem par, / Só de joelhos podemos / Nest'hora augusta fitar / Riachuelo e Cabrito / Que sobem para o infinito / Como jungidos leões / Puxando os carros dourados / Dos meteoros largados / Sobre a noite das nações / (ALVES, 2009, p. 52).

Na obra Os Escravos os autor traça linhas que o consagraram o título de "poeta dos escravos". Questões abolicionistas e de denúncia ao processo de escravização salta dos versos e permiti uma visão, construída pela literatura, sobre aspectos da escravidão de negros no Brasil do século XIX. Chama atenção os relatos sobre as condições que passavam os escravizados, cotidianamente e durante o trafico entre África e Brasil. Uma ficção que buscava denunciar e evidenciar a desumanidade presente na escravidão, e presente nos poemas a seguir:

A canção do africano
O escravo então foi deitar-se / Pois tinha de levantar-se / Bem antes do sol nascer / E se tardasse, coitado, / Teria de ser surrado, / Pois bastava escravo ser. (ALVES, 2009, p. 37)

O navio negreiro
Ontem a Serra Leoa, / A guerra, a caça ao leão / O sono dormindo à toa / Sobre as tendas da amplidão! / Hoje... O porão negro, fundo. / Infecto, apertado, imundo, / Tendo a peste como Jaguar... / E o sono sempre cortado / Pelo arranco de um finado / E o baque de um corpo no mar. (ALVES, 2009, p. 101)

O tratamento dado aos negros escravizados é de longe um traço forte no processo de escravidão no Brasil, que durante séculos teve sua economia alicerçada pela força do trabalho dos negros vindos da África. Sobre esse aspecto Michell Bergmann afirma que: "Na travessia, costumavam ficar presos, em parte pelo medo de motins, em parte para evitar que se jogassem ao mar, em gesto suicida." (BERGMANN, 1976, p. 39), algo que concorda e complementa os escritos de Castro Alves em "O navio negreiro". O aspecto complementar em questão esta no campo da percepção, segundo a qual o suicídio pode ser interpretado como ato de resistência à exploração, algo não perceptível no poema, mas que o professor de história poderá explorar em sala de aula. Assim os estudos de natureza não literária (antropológicos, históricos e sociológicos, por exemplo) podem suplantar uma limitação natural ao discurso literário, que não tem compromisso com os acontecimentos em suas particularidades mais específicas.

O trato da literatura como documento em sala de aula pode ser percebida a partir da relação dialógica construía entre autor e leitor, informada por Mikhail Bakhtin (1997), e que amplia as possibilidades de interpretações sobre os acontecimentos, na medida em que permite a construção da cultura a partir da relação entre esses sujeitos. No caso dos poemas indicados neste trabalho, às visões construídas de modo a problematizar o tema em questão, podem dizer sobre a identidade do autor, o contexto da época, a forma como tais versos eram socialmente difundidos. Nesse contexto, e seguindo as indicações feitas por Roger Chartier (2010), que aponta a importância da posição do leitor frente ao texto, é importante identificar nos poemas de Castro Alves uma possibilidade de reflexão para professores e estudantes.

A literatura construída por Castro Alves é um registro de seu tempo, por isso pode ser tratada pelo professor de história sob a ótica da inserção de documentos em sala de aula. Nesse sentido, e como afirma Circe Bittencourt (2011) e Selva Guimarães (2012) é preciso problematiza-lo a luz do conteúdo didático posto, e não mais como simples ilustração ou complemento novidadeiro. No caso particular deste trabalho os conteúdos, Guerra do Paraguai e Escravidão no Brasil, ganham quando o professor de história decide fazer uso das representações sociais presentes nos poemas de Castro Alves. Com isso, modos de vida, expectativas, lutas, resistências, opressão, são questões que saltam dos escritos, e que permitem ao estudante leitor uma visão sobre o espaço temporal dos acontecimentos, dimensões ausentes ou que podem estarem fragilizadas nos manuais didáticos.

Uma aproximação entre Literatura e História, pode vir a ser algo representativo e importante para o campo do Ensino de História, uma vez que a escola pode ser percebida como um espaço público de produção e disseminação do conhecimento histórico, ações possíveis, sobretudo por meio da interdisciplinaridade. A trajetória dessa produção/disseminação para as normas historiográficas atuais deve estar alicerçada em uma serie de conhecimentos produzidos pelas mais diversas culturas. Tal aproximação, por meio de uma abordagem interdisciplinar em muito contribui para construção de um conhecimento histórico escolarizado e capaz de oferecer ao estudante o contato com múltiplas representações do passado, algo percebido por meio das artes, e da arte literária presente nas obras de Castro Alves. Com isso, há um ganho significativo para a construção do conhecimento histórico em sala de aula, uma vez que aos sujeitos envolvidos nesta ação, professores e estudantes, tem a sua disposição uma linguagem sobre uma dada realidade social que lhes permite problematizar a sua própria realidade, isso em movimento constante de verificação das identidades sociais.
Por fim vale dizer que, sobre ensinar história, e de seu papel, o Ensino de História, tal como o movimento historiográfico nos últimos tempos, ganhou com o diálogo interdisciplinar entre a História e a Literatura no ambiente escolar. Tais aproximações permitem ao professor de história novos horizontes, novos documentos, conseguinte, novas possibilidades para o processo de ensino aprendizagem. O trabalho em sala de aula, com o gênero literário poesia mostra inúmeros caminhos e alternativas de discussão para conteúdos tradicionais na disciplina história. Para além da beleza estética, os versos de Castro Alves denunciam seu tempo, seja na Guerra do Paraguai ou sobre a Escravidão no Brasil, sua militância política põe em evidência sujeitos históricos marginalizados e auxiliam professores e estudantes no contato com a diversidade da condição humana no tempo passado, na História.

Referências

ALVES, Castro. Espumas Flutuantes.  São Paulo: Martin Claret, 2009, 190 p.
___. Os escravos. São Paulo: Martin Claret, 2007, 148 p.
BAKHTIN, Mikhail. O contexto de valores (autor e contexto literário). In: Estética da Criação Verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 2ª ed. -- São Paulo: Martins Fontes -- (Coleção Ensino Superior), 1997, p. 208-215.
BERGMANN, Michel. A condição escrava no Brasil. In: Nasce um povo. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1976, p. 39-51.
BITTENCOURT, C. M. Usos didáticos de documentos. In: Ensino de História: fundamentos e métodos.  4ª Ed. São Paulo: Cortez, 2011, p. 325-338.
BLOCH, Marc. A história, os homens e o tempo. In: Apologia da história ou o oficio do historiador. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p.51-68.
CHARTIER, Roger. História e Literatura. Topoi, Rio de Janeiro, nº 1, 2010, p. 197-216.
Disponível: http://www.revistatopoi.org/numeros_anteriores/topoi01.htm Acesso em: 02/02/2016.
RUIZ, Rafael. Novas formas de abordar o ensino de história. In: História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. KARNAL, Leandro (org.). Contexto, 2012, p. 75-91.
GUIMARÃES, Selva. Literatura. In: Didática e Prática de Ensino de História: experiências, reflexões a aprendizado. 13ª ed. rev. e ampl. Campinas-SP: Papirus, 2012, p. 314-324.


7 comentários:

  1. Olá

    Levando em conta que deve ser aprofundado todo o contexto do poema, é possível usar o poema como forma de ensino de História com alunos a partir de qual idade?

    Obrigada

    Ass: Karina Honorio de Almeida

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  2. Olá Karina

    A literatura sobre o uso de linguagens no ensino de história não baliza a partir de qual idade, especificamente, podemos usar a literatura como recurso para o ensino aprendizagem em história, apenas trata da Educação Básica e orienta aprofundamentos e abordagens especificas para as modalidades Fundamental e Médio, por exemplo. Sobre a contextualização da obra acredito que está pode seguir por esse caminho, mas o professor tem autonomia para decidir o que, como e quando usar, uma vez que ele conhece o perfil da turma e da escola. Caso haja possibilidade de trabalhos interdisciplinares como outros professores, por exemplo, acredito que o trabalho se torna mais interessante, mas isso é algo que só a realidade do profissional permite dizer ser viável ou não.

    Espero ter contribuído.
    Atenciosamente.

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  3. Olá, gostei muito da temática abordada e gostaria de saber sua opinião sobre que tipo de literatura podemos recomendar para nossos alunos de história já que está na moda livros com temática relacionada a historia.

    Ass.: Cleberson Vieira de Araújo

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    1. Olá Cleberson, concordo contigo sobre a questão do "modismo" nas temáticas históricas, vejo isso como algo interessante, as pessoas de alguma forma estão lendo sobre o passado. Particularmente tenho interesse por usos da literatura social, principalmente a literatura moderna. Mas o campo de possibilidade com uso desse recurso é amplo e abarca os vários períodos da história, presente no currículo de história. O fundamental está na ação de problematizar a fonte e se possível usar mais de texto ou artigo, respeitando sempre a especificidade da turma.

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  4. O uso da poesia no ensino de história, além de proporcionar o incentivo aos alunos a apreciarem a poesia, ao mesmo tempo, incentiva-os a interpretar a mensagem do poeta através do seu trabalho em determinada época. Na sua opinião João Pedro, além dos cuidados com as questões formuladas para os (as) alunos (as) de acordo com sua idade e grau de estudo, quais cuidados devemos tomar ao trabalharmos em sala de aula com os (as) alunos (as) o texto em poesia?

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    1. Tal como outras linguagens, acredito que devemos, sempre, levar levar em consideração o fato de estarmos inserindo em sala um documento de época e seu tratamento deve obedecer as normas de análise historiográfica do mesmo, adaptandas a realidade do ensino. Isso obedecendo as especificidades da literatura. A supervalorização ou trabalho com uma única fonte certamente compromete a discussão, em graus diferentes, mas podem minar a abordagem metodológica e um trabalho eficiente do profissional em história.

      Espero ter contribuído.

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  5. O uso da poesia no ensino de história, além de proporcionar o incentivo aos alunos a apreciarem a poesia, ao mesmo tempo, incentiva-os a interpretar a mensagem do poeta através do seu trabalho em determinada época. Na sua opinião João Pedro, além dos cuidados com as questões formuladas para os (as) alunos (as) de acordo com sua idade e grau de estudo, quais cuidados devemos tomar ao trabalharmos em sala de aula com os (as) alunos (as) o texto em poesia?

    Atenciosamente : José Roberto Wosgrau

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