O ORNITORRINCO ESCOLAR E O OFUSCAMENTO
INDÍGENA
Edilson Ribeiro Silva
Educação branqueada, mentes escurecidas
A educação brasileira
é herdeira dos moldes jesuítas que consistia em mascarar as práticas da
colonização e substituir costumes nativos, por meio da imposição do modelo
português. Esse sistema de formação se perpetuou até os dias de hoje e nossas
crianças continuam recebendo o mesmo tipo de educação.
Em pesquisas feitas em
duas escolas públicas do município de Paulo Jacinto-AL, foram coletados dados
importantes para entendermos a ineficácia da escola e comprovar que os
conteúdos ministrados ao aluno do ensino fundamental são bem semelhantes ao do
ensino médio, fazendo com que as informações sejam estanques, não evoluindo a
cada turma ou abordagem. Desse modo, para comprovar o entrave frente aos
estudos da temática indígena temos que levar em conta o que os alunos sabem
sobre o assunto. Em
entrevistas com 27 alunos do 9º ano do ensino fundamental e 24 do 3º ano do
ensino médio pôde-se notar o quanto a escola paralisou, pois os conteúdos são
bastante semelhantes nos dois níveis de ensino. E ao perguntar o que eles
sabem sobre os índios as respostas são basicamente as mesmas. Sobre isso o
entrevistado nº 1 responde que:
Vivem em grandes grupos, em tribos, são
diversas atividades diárias que eles têm. Suas características é morenos de
diferente tamanho, eles descobriram muitas coisas que hoje utilizamos. Eles
descobriram o fogo e como se faz. Andam nu [sic], depende da caça para
sobreviver, tem seus rituais, pode ter várias mulheres. O índio tem cabelos
bons, mora nas florestas, sua língua geralmente é o tupi guarani, foram os
primeiros povos que moraram no Brasil.
Nas entrevistas, os
alunos expõem em poucas palavras o que sabem sobre os índios do atual Brasil, a
partir da provocação sobre qual a situação do indígena depois de 500 anos de
contatos com outros povos. A maioria dos entrevistados (alunos do 3º ano) deu a
mesma resposta, podendo ser resumida na fala do entrevistado nº 1. Nesse sentido, pode-se
enfatizar depoimentos que são de fundamental importância para entender o quão
pouco os alunos sabem sobre os índios. É o relato de alunos do ensino médio que
diz:
Os índios eram muito trabalhadores, eles
eram politeístas, matavam animais para sua sobrevivência e sua filha era
obrigada a casar quando completasse uma idade já tinha que ser mulher com 12
anos, gostava muitos dos seus rituais principalmente a capoeira.[sic]
Do mesmo modo, os
alunos do fundamental ao serem questionados demonstram inquietações, a feição
dos rostos deixa transparecer que desconhecem o assunto, escaparam alguns
cochichos, como se estivessem com medo, alguns gritos dizendo 'índio é
preguiçoso!' 'não existe mais índio!' O professor de história que estava
presente durante as entrevistas revidou dizendo "e tudo que eu
ensinei para vocês? Sentou-se e disse-me baixinho "esses jovens de hoje
não prestam atenção em nada." Passado esse momento inicial, a
entrevista fluiu e as falas são sintetizadas através do entrevistado nº 2:
Eu não sei muita coisa sobre os índios,
mais {sic} o pouco que eu sei é que os índios foram os primeiros habitantes do
Brasil e que alguns índios usam poucas roupas e que eles caçam as próprias
comidas e que eles vivem em aldeias dentro de ocas e que eles vivem livres.[sic]
A fragilidade
observada no conhecimento dos alunos leva-nos a inferir que provavelmente a
escola não acompanhou a evolução dos conceitos nem a discussão sobre a imagem,
a identidade ou a história dos primeiros habitantes do Brasil, descumprindo seu
papel de promotora da evolução física dos indivíduos. É provável que a escola
continua presa no passado como um ornitorrinco que mesmo agregando uma pluralidade
de diferenças não evolui e está estacionada e ofuscada pela excessiva luz negra
da história branca.
As escolas reproduzem
aquela velha visão do índio criada em desenhos animados, filmes e na televisão.
Com base nos depoimentos, pôde-se constatar que existe um déficit no ensino da
cultura indígena, assim as âncoras que sustentam as informações que falam sobre
o índio imaginado ou tradicional do século XVI são as mesmas que ainda hoje
estão atracadas nas salas de aulas, perpetuando a visão criada durante os
primeiros contatos na época da colonização, fazendo com que os alunos aprendam
de forma estática ou atrasada a respeito de algo que tem sofrido mudanças
contínuas.
O Brasil está repleto
de influências do pensamento europeu, fases escuras causadas por brancos, onde
os índios são vistos como povos atrasados ou como desocupados que querem apenas
terras. Vale ressaltar, que alguns indígenas são bem sucedidos, estudam em
universidades, tem profissão: são médicos, advogados, professores, jogadores de
futebol, ou seja, estão inseridos na sociedade do não índio, no meio que os
silenciou diversas vezes e os reduziu no processo de invisibilidade, na
tentativa de inibir a autoafirmação e ressurgência étnica.
Daí a afirmação de que
o surgimento de uma nova sociedade indígena não é apenas o ato de outorga de
território, de "etnificação" puramente administrativa, de submissões,
mandatos políticos e imposições culturais, é também aquele da comunhão de sentidos
e valores, do batismo de cada um de seus membros, da obediência a uma
autoridade simultaneamente religiosa e política. Só a elaboração de utopias
(religiosas/morais/políticas) permite a superação da contradição entre os
objetivos históricos e o sentimento de lealdade às origens, transformando a
identidade étnica em uma prática social efetiva, culminada pelo processo de
territorialização. (OLIVEIRA, 1998, p. 66)
Já não cabe mais,
estudar o índio como um ser do passado, é mais viável enxergá-los como são
atualmente; comunidades politicamente organizadas que lutam pela retomada de
seus territórios, com os quais criaram vínculos (caça, pesca e sepultamentos)
de sobrevivência dando-lhe sentido, tecendo seu modo de ser. Para isso,
torna-se necessário e urgente que a escola refaça seus conceitos e redefina
seus objetivos, dando uma abordagem mais real e menos folclórica as comunidades
tradicionais.
É notável e explicita
a deficiência no aparelho escolar. Os professores, em sua maioria, não
ministram aulas com imagens atuais e pressupostos teóricos fiéis para que os
alunos possam desenvolver uma mentalidade amadurecida sobre o índio, sem isso,
continuarão enxergando de forma errônea, esquecendo do indivíduo que passou por
mais de 500 anos de colonização, perseguição e lutas e mesmo assim não perdeu
sua cultura e se mantém firme em tempos de intempéries.
A imagem construída do
índio pela escola é a mesma retratada nos manuais didáticos, tornando os livros
uma discrepância ambulante, mas por ser uma das armas que facilitam o trabalho
exercido pelos professores para transmitir conhecimentos aos seus alunos, são
fontes endossadas pelo governo que fazem as mentiras se solidificarem.
Outro ponto para
entendermos essas lacunas expostas pelos alunos é a preparação que eles tiveram
dos 6 aos 10 de anos durante o primeiro ciclo (do 1º ao 5º ano) do ensino
fundamental, uma vez que os mesmos foram preparados por pedagogos, pessoas que
não tem formação específica, desconhecendo assim a temática indígena. Como
falar de algo que não conheço? Seria o mesmo que um deficiente visual por
a mão no fogo, pois iria apenas causar danos, a queimadura cicatrizaria, mas as
informações distorcidas ou incompletas modificam a realidade, criam ou
perpetuam estereótipos e o aluno não exercita ou não cria o senso critico.
A pedagogia tem uma maneira bem jesuítica de colonizar as mentes das crianças. No dia19 de abril as professoras do fundamental pintam os rostos dos alunos, põem as músicas temáticas e dançam em círculos, talvez até acreditando que com tais performances ocorre o aprendizado sobre o papel e o lugar do índio na sociedade e na história.
A pedagogia tem uma maneira bem jesuítica de colonizar as mentes das crianças. No dia19 de abril as professoras do fundamental pintam os rostos dos alunos, põem as músicas temáticas e dançam em círculos, talvez até acreditando que com tais performances ocorre o aprendizado sobre o papel e o lugar do índio na sociedade e na história.
Se a história em
quadrinhos mistura gêneros artísticos prévios, se consegue que interajam
personagens representativas da parte mais estável do mundo - o folclore - com
figuras literárias e dos meios massivos, se os introduz em épocas diversas, não
faz mais que reproduzir o real, ou, melhor, não faz senão reproduzir as
teatralizações da publicidade que nos convencem a comprar aquilo de que não
precisamos, as "manifestações" da religião, as "procissões"
da política. (CANCLINI, 1927,p 28)
Muitas escolas
continuam enaltecendo, em sala de aula, o índio como personagem folclórico,
desvinculando-o da realidade para transformar em teatralizações, assim como
muitos fazem com a história em quadrinhos ou com os contos infantis. Desse
modo, o ensino de História indígena nas escolas utilizando materiais
descontextualizados e desatualizados condena as crianças e viverem uma
ideologia bitolada e contraditória, interferindo diretamente na história e na
qualidade da educação oferecida ao nosso povo. Assim, precisamos estar cientes
de que a presença indígena é bem mais importante, pois ela é a luz para
desvendar como chegamos até aqui.
Considerações finais
Até agora, constatamos
que, um novo horizonte se abriu para a cultura indígena, silenciada por mais de
500 anos, mas grande parte das escolas brasileiras ainda guarda paradigmas,
podendo ser representadas pelo ornitorrinco, um animal de pouca visão (por
viver em águas escuras) cuja função biológica não é bem conhecida (parece pato,
castor e enguia), porém como este animal, a escola é assustada pelos poderosos
que desrespeitam, caçam e destroem a sabedoria, a cultura e a visibilidade.
A escola omitia a
tradição nativa e valorizava apenas o que lhe era externo, estavam acorrentadas
as âncoras dos navios portugueses, que traziam no seu interior a escravidão, os
maus tratos e a opressão ao veio original da sociedade brasileira, engendrando
uma imagem do índio como uma doença que precisava ser curada. Com a atualização do ensino
de história incorporando o estudo das tradições indígenas é possível combater
os preconceitos desde a base e estudar a história deste país de forma
multicultural. Assim os alunos indígenas que estudam em escolas de não índios,
vão se auto reconhecendo nos assuntos propostos em sala, tendo um melhor
desempenho, a medida que, os não indígenas vão os vendo como semelhantes.
Todavia, existe a
necessidade de fiscalização para ver como tais leis estão sendo aplicadas na
prática docente. Pessoas preparadas são necessárias para assumir tal tarefa e
serão responsáveis por desconstruir o pensamento obscurecido pela escola ao
longo do tempo com suas despreparações. É mister que em complemento ao livro
didático sejam utilizados metodologias de aprendizagem cujo embasamento esteja
em textos de autores engajados com a causa indígena ou produzidos pelos
próprios índios, entre outros pressupostos que possam contribuir para que os
alunos aprendam e entendam como este Brasil se formou.
Referências
LUCIANO, Gersem dos Santos. Educação escolar indígena no Brasil: avanços, limites e novas perspectiva. Goiânia-GO, 2013.
LUCIANO, Gersem dos Santos. Educação escolar indígena no Brasil: avanços, limites e novas perspectiva. Goiânia-GO, 2013.
BRASIL. LEI n. 11.645,
de 10 de março de 2008. Brasília, março de 2008: http://www.jusbrasil.com.br/topicos/10643688/artigo-231-da-constituicao-federal-de-1988 acessado
em 29/09/2015.
CANCLINI, Néstor
García. Culturas Híbridas - estratégias
para entrar e sair da modernidade. Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão.
São Paulo: EDUSP, 1997. p.283-350: Culturas híbridas, poderes oblíquos p 28.
DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à
antropologia social. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1987, p 4.
LARAIA, Roque de
Barros. Cultura: um Conceito
Antropológico Rio de Janeiro: Zahar, 1995, p 52.
PACHECO, João de
oliveira. Uma etnologia dos "índios
misturados"? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais.
Rio de Janeiro, 1997 p 66.
Na sua opinião onde estão os índios não bem sucedidos?
ResponderExcluirSer bem sucedido é estar inserido na sociedade não-indígena?
Ser bem sucedido é estar inserido na sociedade não-indígena?
ExcluirUso o termo ”bem sucedido” por está falando em padrões europeus, ou seja uso a ótica do não índio. Tomamos por exemplo o caso de Raposa Serra do Sol, onde uma índia defendeu seu povo no STF, ela era advogada e vestia toga, mas pintou o rosto para que lembrassem a sua causa.
Na sua opinião onde estão os índios não bem sucedidos?
O caso da advogada ilustra bem a situação dos indígenas em tempos atuais. Para muitos são bem sucedidos por estarem formados. Para eles o sucesso pressupõe que defendam seus direitos, desse modo essa questão é bem relativa.
Interessante. Muito bem Edílson; o sucesso é relativo, afinal para os indígenas ser bem sucedido é lograr êxito na defesa de seu povo e causa. Para nós, não indígenas, o sucesso é precedido de títulos. É exatamente nesse ponto que os indígenas estão atuando, se inserindo nos debates de acordo com as regras da nossa sociedade tão amante da meritocracia.
ResponderExcluirLuan Moraes
isso mesmo Luan não se pode ver essa questão por apenas uma face, o livro de ROBERTO DA MATTA: RELATIVIZANDO ilustra muito bem o que quero dizer.
ExcluirOlá. Você fala em estudar a história deste país de forma multicultural, nas considerações finais. Existem críticas ao multiculturalismo, principalmente ao de concepção iluminista ou humanista, que define humanidade como ponto comum aos diferentes. E nessa igualdade surgem discursos de respeito e tolerância, definições que partem de uma cultura sobre as demais. Assim, não há uma falsa harmonia, todos são humanos, mas quais humanos fazem os currículos de história, escrevem os livros, quem conta a história dos outros? Talvez o multiculturalismo tenha um (etno)centro, creio que não seja o representantes dos povos tradicionais e minorias. Como você lida com essa ideia de multiculturalismo, qual e como seria o que você propõe? Não seria melhor algo além de respeito e tolerância as culturas diferentes?
ResponderExcluirDhiogo Rezende Gomes.
olá, Bom entendo multiculturalismo como um princípio que vai além do respeito e tolerância, dessa forma as diferentes culturas que habitam o mesmo território devem ser respeitadas. Assim o multiculturalismo permite questionar o currículo escolar, com isso a ideia de etno(Centro) se evapora ao poucos. Como digo no texto proponho que ”Pessoas preparadas são necessárias para assumir tal tarefa e serão responsáveis por desconstruir o pensamento obscurecido pela escola ao longo do tempo com suas despreparações. É mister que em complemento ao livro didático sejam utilizados metodologias de aprendizagem cujo embasamento esteja em textos de autores engajados com a causa indígena ou produzidos pelos próprios índios, entre outros pressupostos que possam contribuir para que os alunos aprendam e entendam como este Brasil se formou.
ResponderExcluirOk. Entendi sua postura um pouco. Meu questionamento advém da leitura que fiz do livro: Documentos de identidade, de Tomaz Tadeu da Silva, um autor muito ligado aos estudos culturais de Stuart Hall. Ele fala que além de respeito e tolerância, deve-se sempre problematizar as diferenças em sua produção, entendendo o currículo sempre como disputado nas relações de poder, estas que produzem as diferenças. Portanto, problematizar as diferenças é melhor do que o respeitar e tolerar, que apesar do caráter positivo, tende dirimir as diferenças, de forma que a tolerância parte do tolerante, mantendo mesmo que não tão aparente, uma hegemonia do cânon ocidental frente as suas margens. Os povos indígenas, negros, nordestinos, homossexuais... devem ter suas diferenças problematizadas e entendidas no seu processo de criação a partir das relações de poder.
ExcluirDhiogo Rezende Gomes
Obrigado seu comentário enriqueceu a outra maneira de como vejo a história, irei procurar o livro e entender esse multiculturalismo como um ponto que merece ser problematizado.
ExcluirBoa tarde Edilson Ribeiro. Desde já quero dar os parabéns pelo excelente texto.
ResponderExcluirSou aluna do 4 ano de História e,ano passado, na disciplina de Didática da História fiz uma pesquisa sobre a consciência histórica dos alunos do 6 ano de um colégio sobre a questão indígena. As respostas foram em muito parecidas com as que você obteve. Entretanto, percebe-se que os alunos não se veem como descentes indígenas e, como se sabe, em um país miscigenado, e principalmente na minha região, morte do Paraná, onde existe várias reservas indígenas, é provável essa ligação. Todavia, os alunos sempre se referenciam aos índios como "eles", e não como "nós". Eu gostaria de saber a sua opinião sobre a razão desse distanciamento e essa negação da identidade indígena, diferente do que ocorre com a identidade branca, apropriada pela grande maioria?
Desde já agradeço a sua atenção!
Natália da Silva Madoglio Martines
Olá! Parabéns pelo seu texto!
ResponderExcluirApesar das leis que obriguem o ensino das histórias e culturas indígenas na escola, o que vemos na prática é ainda muito pouco.
O ensino da História indígena muitas vezes só aparece no período da "Conquista" da América pelos Europeus, como destaca a Professora Cinthia Araújo ou no dia do Índio, sem nenhuma reflexão ou problematização.
Rayane de Castro Guedes