Erivaldo Cavalcanti

HISTÓRIA E LITERATURA: DEBATES E NOVAS LINGUAGENS

Erivaldo Cavalcanti dos Santos Jr



É na escola que obtemos o início de nossa formação acadêmica e social. Durante o momento das aulas somos expostos a diversas teorias, ideologias, e informações de grande relevância para o desenvolvimento intelectual de um indivíduo. É também neste espaço de educação que nos é introduzida aquelas que por um longo período de nossas vidas serão nossas referências culturais. A literatura é parte fundamental na criação deste cânone. A prova encontra-se na sua relação com outras áreas do conhecimento que buscam a interdisciplinaridade pelo fato de a literatura em suas composições reunir dados de todas as áreas do conhecimento.

Diante deste cenário, a relação entre história e literatura apresenta possibilidades para aqueles que se dedicam aos estudos históricos e também como um recurso educacional. Contudo, esta relação, assim como todas, apresenta ascensões e quedas. Durante um considerável período de tempo, era notável uma resistência por parte dos historiadores em admitir outras áreas do conhecimento em conjunto com a História, principalmente pela forte influência do Positivismo no século XIX que tratava o estudo do passado com tanto rigor quanto uma ciência exata.

"Hoje em dia, parece bastante claro que a crença do século XIX na dessemelhança radical entre arte e ciência resultou de um mal-entendido promovido pelo medo que o artista romântico sentia da ciência e pela ignorância que o cientista positivista tinha da arte". (WHITE, 1994, p.40-41).

Esta influência positivista foi estendida também as salas de aula onde ainda hoje é notável a resistência na história dos grandes acontecimentos, dos grandes heróis, dos vencedores. Entretanto, na virada para o século XX, novas correntes de pensamento surgem com o objetivo de repensar o ofício do profissional da História e principalmente de problematizar o passado que parecia a nós tão engessado. Uma das propostas era de aumentar os diálogos que a História poderia fazer com outras áreas do conhecimento humano. A sociologia e a antropologia foram as primeiras a se integrarem a história, mas, com o crescimento do interesse em outras áreas de pesquisa como o cotidiano e a cultura foi dado também espaço as artes, e entre elas estava à literatura.

"É bem possível que a tarefa mais difícil que a atual geração de historiadores é chamada a realizar seja expor o caráter historicamente condicionado da disciplina histórica, presidir a dissolução da reinvindicação de autonomia que a história mantém com respeito às demais disciplinas e promover a assimilação da história a um tipo superior de investigação intelectual que, por estar fundada numa percepção mais das semelhanças entre a arte e a ciência que das suas diferenças, não pode ser adequadamente assinada nem por uma nem por outra". (WHITE, 1994, p. 41).

Após conquistar notoriedade no meio acadêmico, estes novos teóricos, principalmente os franceses, iniciaram um grande debate sobre as fontes do historiador, e lá estava a literatura novamente ocupando local de destaque. Estas inovações não se limitaram a academia somente, aos poucos as novidades foram penetrando também nas instituições de ensino. Aos poucos era possível perceber a adesão em sala de aula de um diálogo saudável entre a história e a literatura principalmente daqueles profissionais que desejavam ir além das limitações impostas pelo material didático. É impossível afirmar que não houve evolução na maneira a qual o livro didático propõe interações com outros conhecimentos e também com as artes, basta um breve olhar sobre os exemplares de auxílio ao professor onde se existem citações e indicações de obras literárias e artísticas, porém, somente a indicação destas obras não reflete a importância que adquiriram ao longo do tempo.

"Por isso, nunca será demais recomendar a leitura direta dos textos originais, evitando o mais possível bibliografia crítica, comentários, interpretações. A escola e a universidade deveriam servir para fazer entender que nenhum livro que fala de outro livro diz mais sobre o livro em questão; mas fazem de tudo para que se acredite no contrário". (CALVINO, 1993, p.12).

Além de existirem as dificuldades de conciliar a interdisciplinaridade e o tempo hábil para exercer os tais projetos, a metodologia para o uso da literatura na maioria dos casos é mal executada. Este erro ocorre na maioria das vezes por dois motivos: A negligência com o material oferecido e má utilização da relação entre a literatura e a história.

O primeiro ponto torna-se um grave erro pelo fato de não acompanhar, aconselhar e trabalhar a obra em sala. Buscar o interesse e participação do público alvo que são os estudantes também é fundamental, principalmente diante da dificuldade de oferecer para uma geração acostumada com a imagem, com as múltiplas explosões de uma tela, ou em outras palavras, uma geração que se adaptou a compreender símbolos. Com o avanço cada vez mais agressivo da tecnologia "preferimos a imagem ao objeto, a cópia ao original, o simulacro (a reprodução técnica) ao real" (SANTOS, 2008, p.12).

Uma alternativa para explorar o interesse das novas gerações nas imagens é, por exemplo, uma série de adaptações de obras clássicas para o formato de histórias em quadrinhos. Encontram-se desde exemplares de O Conde de Monte Cristo e da Ilíada e Odisseia até exemplares do Manifesto do Partido Comunista em mangá (a linguagem japonesa das histórias em quadrinhos). Esta tendência tornou-se crescente na busca das editoras para levar até as novas gerações obras que atualmente são reconhecidas como clássicos. Outro recurso que deve também ser levado em consideração é a utilização de obras que foram transpostas dos livros para as telas, nunca substituindo o uso do exemplar original, mas utilizar o filme como uma demonstração, uma introdução ao que será trabalhado com a obra. Contudo, mesmo com a falta ao acesso destes materiais, deve ser salientado que a escola tem a função de apresentar aos estudantes a literatura, e os clássicos. Ao realiza-los provemos aos alunos o suporte necessário para que o mesmo construa futuramente o se cânone.

"A escola deve fazer com que você conheça bem ou mal um certo número de clássicos dentre os quais (ou em relação aos quais) você poderá depois reconhecer os "seus" clássicos. A escola é obrigada a dar-lhe instrumentos para efetuar uma opção: mas as escolhas que contam são aquelas que ocorrem fora e depois de cada escola. É só nas leituras desinteressadas que pode acontecer deparar-se com aquele que se torna o 'seu' livro".  (CALVINO, 1993, p.13).

A outra problemática listada anteriormente o uso equivocado da relação entre história e literatura dá-se decorrente da primeira postura, ao não analisar e apresentar corretamente a obra escolhida o educador acaba por desperdiçar todo o potencial da obra escolhida, enquanto com simples questionamentos e o levantamento de alguns dados pode-se levar a leitura de uma obra a uma análise de fonte histórica sobre um período.

Questionar-se sobre o período em que o livro foi produzido, sobre a origem do autor, sua posição social e política, perguntar-se sobre quais eram os principais debates de sua época são apenas pequenos pontos que ao serem abordados tornam o ofício de trabalhar com a literatura também uma descoberta de novas perspectivas para um mesmo período estudado.

A literatura permite que pensemos além daquilo que nos é exposto até mesmo pelos livros de história, nos faz questionar sobre algumas posturas que até antes do contato com estas obras pensávamos ser inimagináveis. Outro aspecto que deve ser trabalhado com a literatura é a história das minorias, um exemplo encontra-se na antiga Grécia. Enquanto os livros didáticos persistem na postura de não problematizar a posição da mulher grega, encontramos na literatura personagens de grande poder, a exemplo de Antígona, pertencente a Sófocles e Medéia de Eurípides. Ambos os casos são personagens femininas e que demonstram que era possível a existência de mulheres de grande destaque na sociedade, algo que foge completamente do antiquado discurso das mulheres de Atenas.

"O clássico não necessariamente nos ensina algo que não sabíamos; às vezes descobrimos nele algo que sempre soubéramos (ou acreditávamos saber) mas desconhecíamos que ele o dissera primeiro (ou que de algum modo se liga a ele de maneira particular). E mesmo esta é uma surpresa que dá muita satisfação, como sempre dá a descoberta de uma origem, de uma relação, de uma pertinência". (CALVINO, 1993, p.12).

Entretanto, este método requer cuidados. Não podemos nos referir a um escritor, um criador de ficções como um profissional da história. Em A Poética, Aristóteles já atentava para esta diferenciação ao afirmar "é evidente que não compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu; mas sim o que poderia ter acontecido, o possível, segundo a verossimilhança ou a necessidade". (ARISTÓTELES, 2003, p. 43). Ou seja, ainda que a proposta do autor seja retratar um acontecimento, seu ofício lhe permite a criação de acontecimentos, de personagens para tornar seu produto mais interessante a seu público, enquanto o historiador em sua função obedece a rigores que o credenciam com o seu compromisso com a verdade. Logo, é de fundamental importância demonstrar que mesmo a literatura possuindo privilegiado espaço de debates com a história existe limitações que devem ser respeitadas.

Por fim, podemos considerar que o uso da literatura em sala de aula, e, sobretudo na disciplina de história tem somente a acrescentar aos clichês que são citados ao referenciamos o uso das letras na educação. Contudo, novas considerações podem sempre ser acrescentadas a exemplo da formação e fortalecimento de um senso crítico por parte dos estudantes, além de estimular a visualização de um período histórico diante de diversas perspectivas, o reconhecimento e importância das minorias nos processos históricos.

Se corretamente planejado e executado um benefício pode ser acrescido à lista anterior. Mais do que uma ferramenta de ensino "a leitura, portanto, não é uma experiência pessoal ou, dito de outro modo, a leitura é uma experiência em que o pessoal fica abandonado como condição da própria existência". Em outras palavras a literatura nos forma socialmente, forma seres humanos emancipados do senso comum.

Referências

ARISTÓTELES. Arte Poética. São Paulo: Martin Claret, 2003.
CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
JENKINS, Keith. A História Repensada. São Paulo: Editora Contexto, 2013.
LARROSA, Jorge. Pedagogia Profana: Danças, Piruetas e Mascaradas. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é Pós-Moderno. São Paulo: Editora Brasiliense, 2008.

WHITE, Hyden. Trópicos do Discurso: Ensaios Sobre a Crítica da Cultura. São Paulo: EdUsp. 1994.

12 comentários:

  1. A utilização de obras literárias em sala de aula para possibilitar ao educando maiores possibilidades é extremamente importante, contudo, como trabalhar interdisciplinarmente sem confundir história e literatura?
    Enrique José de Andrade Pereira - UPE / Campus Mata Norte - Graduando em História

    ResponderExcluir
  2. De que formas as obras literárias podem ser empregadas como recurso na aprendizagem, e são utilizadas na integra ou apenas trechos? Como empregar filmes ou histórias em quadrinhos, uma vez que trazem apenas uma parte da visão do acontecimento.
    Maycon André Zanin - UNICENTRO

    ResponderExcluir
  3. Bom dia, atrelar o ensino da história nas aulas de literatura no ensino médio é uma prática frequente. Por outro lado, no ensino fundamental o professor encontrar muita dificuldade em preparar a aula de maneira interdisciplinar. Qual seriam outros recursos, além da materialidade textual, que poderíamos lançar mão no ensino aprendizagem de história e literatura?

    ResponderExcluir
  4. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  5. Boa tarde colegas,
    A discussão de literatura e história já constituía uma prática dos intelectuais gregos da antiguidade. Desta forma, História e Literatura vem dialogando e estão conectadas desde a Grécia Antiga, como pode se observar nos fragmentos de Políbio, fontes de Homero, Estrabão, Platão e Aristóteles. Assim nos relembra Carlo GINSBURG, em sua obra O fio e os rastros. (2007, p. 17-40).
    Neste norte, o pensador italiano apresenta ricos exemplos, entre eles, afirma que Balzac, pode ser visto como romancista e historiador. E, na continuidade de suas reflexões sobre história e literatura, fundamentadas em Auerbach (...) conclui que “convergem mostrando a verdade da ideia romântica de que as múltiplas formas culturais de um episódio estão unidas por uma coerência (…). Tal concepção e prática (as de Balzac) são totalmente historicistas”. O Vermelho e o Negro, de Sthendal; Marcel Proust, Em busca do Tempo Perdido; e Wigínia Wolf, Ao Farol segundo o pesquisador, são obras literárias como também constituem reconhecidas e importantes fontes históricas.
    Então, é possível observar que a interconexão dessas duas áreas de conhecimento, além de ser reconhecida, construiu uma sólida prática ao longo do tempo.
    Neste viés, há experiências no Ensino Médio do Colégio onde trabalho, de várias obras, duas me chamaram mais atenção: a de George Orwel, A revolução dos bichos e a de Joseph Conrad, O coração das trevas. Certamente, é necessário ter um planejamento bem como um Projeto que norteie as atividades e o rumo desejado.
    Marlene Ana Kiewel - Professora readaptada da rede Pública do Paraná

    ResponderExcluir
  6. Boa noite Erivaldo, achei seu texto interessante pois ele se integra a um debate que já está posto tanto no âmbito acadêmico quando no escolar. Porém me inquietam algumas coisas: você fala em interdisciplinaridade quando se refere ao uso de Literaturas nas aulas de História mas será mesmo que o uso direto da Literatura como fonte histórica é verdadeiramente interdisciplinar? Muitas vezes, como professoras e professores de História nos utilizamos de recursos advindos de outras áreas do conhecimento sem trabalha-los de forma realmente interdisciplinar. Me deparo com embates desse sentido sempre que paro para preparar uma aula com recursos que venham de outras áreas. Trabalhar interdisciplinarmente não deveria significar apenas apropriar-se de recursos advindos de outras áreas, mas incluí-las de forma real na sua dinâmica de ensino-aprendizagem, o grande "xis" da questão é o como fazer isso. Como utilizar a Literatura de forma realmente interdisciplinar visto que como professoras e professores normalmente não temos o tempo necessário para nos reunirmos com nossas colegas das demais disciplinas para elaborar projetos mais abrangentes (falo da realidade da rede pública de Santa Catarina)?

    At.,
    Karoline Fin

    ResponderExcluir
  7. Olá colegas,
    Temos uma vasta produção literária, lamentavelmente pouco valorizada. Belas e serias obras continuam quase no anonimato. Como, por exemplo, as obras de Miguel Sanches Neto, entre elas A máquina de madeira, apresenta um belo cenário do século XIX. Obras como as do jornalista Laurentino Gomes, as da historiadora e escritora Mary del Priore, entre tantas outras que nos apresentam cenários da nossa história. Neste sentido, gostaria de conhecer projetos ou práticas de meus colegas professores participantes deste evento sobre a parceria literatura e história de autores contemporâneos brasileiros. Marlene Ana Kiewel

    ResponderExcluir
  8. Olá Erivaldo,
    Todo e qualquer escrito pode ser tomado como fonte, desde que utilizado com o enfoque correto para analisar o que se deseja. A possibilidade da literatura alternativa surge então com grande peso. Através de escritos que vão para além da literatura histórica formal, é possível desvendar um mundo de novas informações no tocante ao imaginário e às mentalidades. É através da literatura alternativa, que surge a possibilidade de perceber traços do universo mental do homem, tomando-a não como uma verdade pronta e acabada, mas como uma possibilidade que os fatos oficiais não autorizariam.
    No entanto, partindo da análise de trabalhos recentes, perceberemos facilmente que os estudos que vinculam história-literatura, sofrem duras críticas, sendo acusados de pautarem-se em uma certa "fragilidade teórica ".
    Nesse sentido, deixando um pouco de lado os parâmetros da sala de aula, e dando prioridade à pesquisa científica, você considera que a Literatura ainda pode ser tomada como uma fonte histórica consistente e segura?

    Att,
    Cynthia Gabriela Lachman

    ResponderExcluir
  9. Olá Erivaldo
    Parabéns pelo texto e pela afirmação da interdisciplinaridade entre a história e a literatura. Sabemos que muitos profissionais insistem em não estimular a literatura por ser uma "fonte oficial", mas devemos ter em mente que analisar o documento ajuda não só a nós, mas a nossos alunos, a ampliar a ideia da cultura trabalhada.

    Att,

    Filipe Matheus Marinho de Melo

    ResponderExcluir
  10. Olá! Gostei do seu texto e achei muito válidas suas posições.
    Acredito que realmente falta aos professores de história mais formação e informação quanto ao uso das imagens, sobretudo obras de arte. Já citei num outro comentário os erros cronológicos em livros didáticos, assim como interpretações que fogem da pretensão e poética de artistas. Já vi obras de Edward Hopper como previsões da crise de 29, sendo que o autor tem uma poética ligada à solidão da metrópole, por exemplo.
    Como você afirma no texto, um outro ponto é deixar claro que as imagens são formas de representação e não a realidade factual. A primeira missa de Victor Meirelles é um bom exemplo, por isso defendo que a imagem é muito mais para debate que para ilustração.
    O que pensas? Concordas ou discordas de mim?
    Um abraço!

    ResponderExcluir
  11. Olá! Gostei do seu texto e achei muito válidas suas posições.
    Acredito que realmente falta aos professores de história mais formação e informação quanto ao uso das imagens, sobretudo obras de arte. Já citei num outro comentário os erros cronológicos em livros didáticos, assim como interpretações que fogem da pretensão e poética de artistas. Já vi obras de Edward Hopper como previsões da crise de 29, sendo que o autor tem uma poética ligada à solidão da metrópole, por exemplo.
    Como você afirma no texto, um outro ponto é deixar claro que as imagens são formas de representação e não a realidade factual. A primeira missa de Victor Meirelles é um bom exemplo, por isso defendo que a imagem é muito mais para debate que para ilustração.
    O que pensas? Concordas ou discordas de mim?
    Um abraço!
    Paulo Henrique Tôrres Valgas

    ResponderExcluir
  12. Existem inúmeras diferenças entre historiadores e literarios, porém, os historiadores são imensamente criticados pela forma "amarrada" com que expõem seus ideais, você acha que seria necessário que os historiadores aderissem a linguagem mais simplificada dos literarios para um mehor aproveitamento de ambos?
    Alana Albuquerque

    ResponderExcluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.