GÊNERO E ENSINO: A
UTILIZAÇÃO DE HISTÓRIAS EM QUADRINHOS PARA A PROBLEMATIZAÇÃO DE GÊNERO EM SALA
Jorge Luiz Zaluski
Maycon André Zanin
Nos
últimos meses a educação escolar brasileira foi palco de novas discussões sobre
o ensino e reformulações curriculares. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC),
como ficou denominada, apresentada em 15 de setembro de 2015, veio em resposta
ao Plano Nacional de Educação – PNE, Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014, que
objetiva reorganizar o sistema brasileiro de ensino para melhor atender o
currículo e as especificidades locais, regionais, dentre outras. (BRASIL, 2014)
Em relação ao gênero, a BNCC é um dos primeiros documentos educacionais a
diferenciar gênero, sexo e sexualidade. Como em relação à disciplina de
sociologia, onde ao propor o ensino da formação indenitária, política e
cultural dos/as indivíduos, destaca que, “[...] compreender a perspectiva
socioantropológica sobre sexo, sexualidade e gênero.” (BRASIL, 2015, p. 300).
Assim podemos destacar que os debates sobre gênero estão sendo inseridos
gradativamente no sistema de ensino.
Segundo
a BNCC, “o componente curricular de História tem por objetivo viabilizar a
compreensão e a problematização dos valores, dos saberes e dos fazeres de
pessoas, em variadas especialidades e temporalidades, em dimensões individuais
e coletivas.” (BRASIL, 2015, p. 241) Ou seja, a análise dos seres humanos no
tempo. Ainda para o BNCC, “[...] uma questão central para o componente
curricular de História são os usos das representações sobre o passado, em sua
interseção do presente e a construção de expectativas para o futuro.” (BRASIL,
2015, p. 241).
Partindo
das premissas da BNCC, em desenvolver o ensino de História interessado na
construção de expectativas para o futuro. E, da utilização de gênero como
categoria de análise, este texto objetiva fazer uma breve discussão sobre a
utilização de História em Quadrinhos (HQ) para o ensino de História e as
discussões sobre gênero. Além de ser objeto de estudo da História, tais
análises devem estar presentes em sala de modo a utilizar o debate para
promover o combate às formas de violência e desigualdades de gênero. Para isso,
como uma das várias possibilidades em utilizar os HQ´s, destacamos a história,
“Tina em o feio”, publicada no Almanaque da Mônica, em setembro de 2012.
Histórias em Quadrinhos,
Gênero e Ensino
Gradativamente
as HQ´s foram inseridas nas práticas escolares. Em 1997, os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs) afirmavam a necessidade de inserir as Histórias
em Quadrinhos em sala, principalmente para trabalhar os temas transversais
(saúde, orientação sexual, cultura, meio ambiente e ética). (BRASIL, 1997,
p.34) Desde então Mauricio de Souza, criador e roteirista de vários
personagens, entre eles a Turma da Mônica, bastante conhecidos e consumidos por
crianças, jovens e adultos. Junto à parceria com o Ministério da Educação (MEC)
elaborou diferentes HQ´s temáticos e endereçados a atividades em sala. A
História em Quadrinho analisada neste trabalho não faz parte destes HQ´s temáticos.
Nossa escolha pela história selecionada consiste em destacar que a utilização
dos HQ´s em sala não precisa abordar um tema especifico, ou no caso de
história, tratar de um tema épico por exemplo. Os quadrinhos nas aulas de história
além de servirem como um instrumento midiático para ampliar as possibilidades
de ensino aprendizagem, como fonte histórica, e ainda, fazer com que os/as
alunos/as tornem-se cidadãos críticos frente a realidade, permitindo que possam
questionar, intervir e produzir o conhecimento histórico.
A
história destacada possui Tina como personagem principal. Segundo Luiza
Baptista Fleury, a, [...] “Turma da Tina, composta por personagens
adolescentes, sendo a Tina criada em 1964, se tornou hippie na década de 70, e
nos anos 80 foi se tornando uma garota bonita e sexy, que fez tanto sucesso que
ganhou uma revista própria.” (FLEURY, 2007, p. 21) Durante a década de 1990 em
diante, várias das edições da Turma da Mônica passaram a publicar histórias
curtas com a personagem Tina. Para Jussimara Sobreira de Campos, “[...] os
temas de suas histórias são, em sua maioria, paquera e namoro, talvez numa
antecipação de A Turma da Mônica Jovem.” (CAMPOS, 2013, p. 36)
Assim,
“Tina em: o feio”, numa trama desenvolvida para uma história de 4 páginas
(71-74), onde inicialmente a personagem Tina ao atravessar a rua é chamada por
um jovem que logo se apresenta como Antônio. Pergunta o nome de Tina, e assim
que ela responde diz estar apaixonado por ela e a convida para uma conversa.
Com a recusa da jovem, ele afirma que recebeu o não por ser feio. Constrangida a
protagonista diz que aceita continuar a conversa. O rapaz a convida para tomar
sorvete e a resposta negativa se repete. Antônio consegue o que quer ao fazer
Tina pensar que ela esta o desprezando. Quando Antônio avista um amigo pede que
Tina diga que eles são namorados, novamente com receio ela concorda com o
acordo. Quando o amigo de Antônio se aproxima e toma conhecimento de que
Antônio e Tina formam um casal, o rapaz acha que Antônio tem um problema por
todo dia ter uma namorada diferente. Tina irritada da um soco em Antônio e vai
embora. Não satisfeito, Antônio afirma que a garota não era “Tudo isso mesmo”.
A
história apresentada completa-se na medida em que as imagens e balões
complementam a trama. Para Will Eisner, a [...] “função fundamental da arte em
quadrinhos (tira ou revista), que é comunicar ideias e/ou histórias por meio de
palavras e figuras, envolvem o movimento de certas imagens (tais como pessoas e
coisas) no espaço.” (EISNER, 1999, pág. 38) Podemos perceber que para a
compreensão da história, devemos entender que cores e gestos fazem parte da
transmissão da mensagem, onde a diferente disposição e composição dos elementos
que formam os quadrinhos podem influenciar ou contribuir para a leitura da
história. Ressaltando a importância da disposição dos personagens nos quadros,
os usos de diferentes formas de balões empregados na representação da fala ou
pensamento podem contribuir para a interpretação do leitor. Assim, diante das
limitações deste texto, estas observações consistem em apresentar
possibilidades da discussão dos HQ´s em sala.
Para
Marjory Cristiane Palhares, a utilização dos quadrinhos em sala permite com que
os/as estudantes sejam instigados a refletir sobre temas de seu cotidiano, mas
que também são objetos da história. Entre algumas propostas de atividade,
segundo a autora:
“forma de utilização de
HQ no processo ensino-aprendizagem pode ser a de inicialmente apresentar a HQ
aos alunos que, após sua leitura, devem fazer um levantamento das temáticas
presentes na mesma, e na sequência partirem para o estudo do conteúdo programático
da disciplina em que tal temática está inserida”. (PALHARES, 2008, p. 13)
Desta
maneira, mesmo que o quadrinho selecionado não seja temático, épico, ou que
trate especificamente sobre um tema, podem ser utilizados como fontes ou
instrumentos pedagógicos. A história contada de Tina é um dessas HQ´s que
contribuem para introduzirem temas importantes para serem discutidos na
disciplina de história.
Fonte: “Tina em: o feio.” Almanaque
da Mônica. Editora Panini Brasil Ltda, nº 35. Ano 2012, p. 71-74.
Acervo dos autores.
Logo no ínicio da história nos
chama a atenção a imagem introdutória da história. O personagem Antônio, é
desenhado com apenas dois dentes na frente, facilmente caracterizando como uma
mítica de um vampiro, olhando fixadamente para o corpo de Tina. Tina
representada com um olhar de constrangimento e estranhamento ao ato de Antônio
para para ouvir o jovem que a interrompeu de sua caminhada.
Conforme David Le Breton, o corpo
é resultante do contexto social e cultural do quais os/as sujeitos estão
inseridos. É composto por gestos, expressão de sentimentos, produção de
aparencia, jogos sutis da sedução, técnicas de corpo, dentre outras atividades
que são desenvolvidas no cotidiano. (BRETON, 2009) Para tanto, uma das
discussões iniciais para o ensino pode ser em relação ao corpo na história,
como exemplo, de como nas relações entre homens e mulheres, o corpo é utilizado
para o pertencimento e identidade de gênero. Ainda com base no quadrinho, podem
serem inseridas discussões sobre as diferentes formas de violência de gênero,
como a exposta na história de Tina, em que Antônio a constrange ao olhara para
o seu corpo.
Como destacado anteriormente,
atribuiu-se gradativamente para a personagem Tina, o esteriótipo de uma jovem
considerada sexy, com corpo claro e magro e a utilização de roupas curtas.
Conforme Selma Regina Nunes de Oliveira, a representação feminina nos
quadrinhos ganhou caracteristicas que diferenciam crianças, jovens e adultos.
Enquanto as personagens infantis destituem a sexualidade, e as adultas,
geralmente mães, são reafirmados traços da maternidade, as personagens jovens
foram erotizadas, logo contribui também para a sexualidade dos/as leitores/as.
(OLIVEIRA, 2002)
Alexandre Eustáquio Teixeira, ao
realizar um estudo sobre os quadrinhos da Turma da Mônica durante a década de
1990, com o objetivo de observar como foram tratados os personagens masculinos
e femininos durante dez anos de edição, destaca que existiu a predominancia de
atividades exercidas por personagens masculinos. Ainda conforme o autor, ao
analisar uma entrevista de Mauricio de Souza sobre questões de sexo e drogas,
destaca que Mauricio de Souza, especialmente nas edições da Turma da Mônica,
preocupa-se em atender a heteronormatividade, que por ser “uma Revista de
família” deve tratar sem abuso desses assuntos. (TEIXEIRA, 2009, p.12) O abuso
que Mauricio de Souza se refere pode ser percebido aqui como a existencia de
casais homoafetivos, que de certo modo contrariam com os ideias de uma
sociedade concebida como heteronormativa.
Além de tais discussões poderem
ser trabalhadas em sala, nos incomoda a busca de manter certos valores. A
história destacada de Tina nos aprsenta logo de inicio o possicionamento abusivo
do jovem a garota, o que nos causa um estranhamento e incômodo. Ao darmos
continuidade a história, percebemos que em todos os momentos Tina é
representada como que incomodada com a situação, chegando a reagir de forma
violenta a tentativa do beijo de Antônio e ao saber que todo dia ele estava com
alguem diferente. Logo, podemos destacar dois pontos importantes: Tina como protagonista
da história, não esta sujeita a dominação e imposição de Antônio; e, de que o
título da história “Tina em: o feio”, pode corresponder as atitudes do
personagem Antônio ter tomados atitudes consideradas “feias”. Sem adentrar em
detalhes o decorrer da história apresenta diferentes atos feitos por Antônio
que não são considerados corretos. Assim, a trama pode ser utilizada também
para fazer com que os/as estudantes apontem os erros de Antônio, servindo como
pontos iniciais para debater sobre as diferentes formas de violência de gênero.
Entre os mais diversos meios de
comunicação a possibilidade de ensino com a utilização das Histórias em
Quadrinhos é bastante promissora. Histórias como esta protagonizada por Tina
podem trazer diferentes contribuições para o processo de ensino aprendizagem, reafirmando
seu papel educativo ao tratar de temas presentes na sociedade. Com as novas
configurações curriculares, principalmente em não fixar-se em tempos históricos
para a construção do conhecimento, os HQ´s podem ser utilizados como fontes
e/ou instrumentos para desenvolver os debates iniciais do conteúdo.
Referências
BRASIL. MEC. Parâmetros Curriculares Nacionais (1ª a 4ª séries). Brasília:
MEC/SEF, 1997.
___________. Parâmetros Curriculares Nacionais (5ª a 8ª séries). Brasília:
MEC/SEF, 1998.
___________. Plano
Nacional de Educação – PNE, Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014.
__________ . Base Nacional Comum Curricular. MEC, Brasília, 2015. Disponível em:
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/documento/BNCC-APRESENTACAO.pdf Acesso em 13 de
fevereiro de 2016.
CAMPOS,
Jussimara Sobreira de. Diferenças
culturais na tradução de A Turma da Mônica. Dissertação em estudos
linguísticos (146 fls) USP, 2013. Disponível em:
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8147/tde-18062013-102220/pt-br.php. Acesso em 13 de
fevereiro de 2016.
EISNER,
Will. Quadrinhos e arte seqüencial.
Trad. Luís Carlos Borges. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
FLEURY,
Luiza Baptista. O discurso dos
personagens secundários especiais da Turma da Mônica. Trabalho de Conclusão
de Curso em Publicidade e Propaganda. Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas,
FASA, Brasília, 2007. Disponível em:
http://repositorio.uniceub.br/bitstream/123456789/1560/2/20427290.pdf Acesso em 12 de
fevereiro de 2016.
LE
BRETON, David. A sociologia do corpo.
4.ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2010.
OLIVEIRA,
Selma Regina Nunes. O jogo das curvas. Revista
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em:
http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/12171/1/ARTIGO_JogoCurvas.pdf Acesso em 12 de
fevereiro de 2016.
PALHARES,
Marjory Cristiane. História em
Quadrinhos: uma Ferramenta Pedagógica para o Ensino de História. In:
Secretária da Educação do Paraná: Arquivos. Disponível em:
http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/2262-8.pdf Acesso em 12 de
fevereiro de 2016.
TEIXEIRA,
Alexandre Estáquio. Meninos e meninas. Homens
e mulheres: uma leitura sobre as representações de gênero em gibis da “Turma da
Mônica”. In: Anais Seminário Internacional Enlaçando Sexualidades Educação,
Saúde, Movimentos Sociais, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, Salvador –
BA. Disponível em:
http://www.ses.uneb.br/anais/MENINOS%20E%20MENINAS.%20HOMENS%20E%20MULHERES%20%20UMA%20LEITURA%20SOBRE%20AS%20R.pdf Acesso em 12 de
fevereiro de 2016.
Essa comunicação clareou as minhas ideias a respeito de uma aula de História que contemplem vários gêneros, visando combater vários tipos de opressão como o machismo, por exemplo. Gostaria de saber como vocês chegaram nesse trabalho? No que o cotidiano escolar, que possivelmente vocês vivenciaram, ajudaram vocês nesse projeto?
ResponderExcluirCarlos Mizael dos Santos Silva
Prezados colegas,
ResponderExcluirA partir do trabalho por vocês desenvolvidos, em algum momento, vocês não acham que os quadrinhos, por exemplo, não possa ser um potencial reforçador de alguns esteriótipos devido a grande numero de imagens?
Att
Samanta Botini
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ResponderExcluirOlá Jorge e Maycon! Gostaria de saber como vocês consideram as HQ´s: como literatura ou outro suporte comunicativo diverso? Grata!
ResponderExcluirJeane Carla Oliveira de Melo
Boa tarde a todos/as. Gratos pela leitura e demais questionamentos sobre o texto apresentado. Este texto faz parte de uma pesquisa mais ampla que estamos desenvolvendo de maneira lenta mais consistente. Jorge, mestrando em História pesquisa gênero, LDB, e ensino. Maycon, também mestrando do mesmo programa (Unicentro) pesquisa sobre a questão ambiental nos quadrinhos da Turma da Mônica, por isso a opção por uma observação das relações de gênero no ensino e as possibilidades da utilização dos HQ,s para o ensino de História. Devido as normas do envio do texto nossa análise foi bastante breve frente as várias possibilidades de discussão da história selecionada. Concordamos com a posição da Samanta, os quadrinhos podem sim reforçar várias desigualdades, por isso percebemos a importância de utilizar os quadrinhos em sala, não apenas para o ensino de história, mas de que algum modo possa ser questionado essas desigualdades e posicionamentos que inferiorizam principalmente as mulheres. Boa leitura a todos/as!
ResponderExcluirJorge - Maycon
Olá Jorge e Maycon,
ResponderExcluirA comunicação realizada por vocês é muito interessante e instigante, sou professora da disciplina de Arte e considero que o uso dos quadrinhos da forma como vocês relatam também pode ser realizada em outras disciplinas além da História. Gostaria de saber a partir de que nível escolar vocês consideram a discussão de gênero plausível de ser abordada por meio do uso de HQ's
Ana Karina do Nascimento Zanin
Olá, Jorge e Maycon! Aproveitando a pergunta da Ana Karina, gostaria de saber para qual faixa etária vocês acreditam que os estudos de gênero devem ser trabalhados? Vocês já tiveram a experiência em sala de aula com essa discussão por meio do uso de HQ´s? Levanto esses questionamentos, pelo fato de perceber que algumas escolas tradicionais possuem resistência com a discussão de estudos de gênero; Inclusive, alguns pais de alunos não aceitam a ideia de desconstrução dos papéis sexuais. Mesmo com toda importância social dessa discussão, acredito que para o professor, especialmente de escola particular as dificuldades com essa temática são diversas. Portanto, parabéns pelo trabalho, por contribuir como uma forma de exemplo didático. Att, Lívia Batista da Costa
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