Jessica Caroline

ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA E EXPERIÊNCIA DE INICIAÇÃO À DOCÊNCIA: ALGUMAS INFLUÊNCIAS AFRICANAS AO VOCABULÁRIO BRASILEIRO

Jessica Caroline de Oliveira



Anos após a Lei 10.639/03 ter fixado a obrigatoriedade do ensino da História africana e afro-brasileira nas escolas, podemos perceber que a tímida preocupação com as questões colocadas em pauta pela Lei vem conquistando espaço, seja no currículo escolar, materiais didáticos ou processos formativos. Não se pode ainda afirmar a sua prática efetiva em todos os espaços de ensino público, todavia, tomando como exemplo a minha experiência acadêmica e docente, pode-se ressaltar e dar visibilidade para as atividades desenvolvidas pela Universidade Estadual do Paraná, campus União da Vitória, que adequou tanto a sua matriz curricular para dar tratamento e formação sobre o tema proposto pela Lei, como também, desenvolveu através do Projeto Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência um subprojeto voltado para a História e Cultura Africana e Afro-brasileira, o qual desde o primeiro ano de graduação permite o contato com a temática afro e práticas docentes em sala de aula.

Uma das discussões fomentadas por este subprojeto PIBID se dá pela preocupação na formação de seus bolsistas e, sobretudo, aos professores da rede de ensino em que o projeto atua, afinal, busca-se dar uma base teórica e metodológica para que os mesmos deem continuidade as atividades desenvolvidas nas escolas. Cabe salientar que o projeto trabalha em escolas públicas, com ênfase às turmas de séries iniciais do ensino fundamental. Portanto, sabendo que esse período escolar comporta o ensino de história voltado para elementos próximos à realidade das crianças, o PIBID busca através da interdisciplinaridade ensinar história da África e da cultura afro-brasileira por meio de aulas/temas que sejam significativas ao lugar social das crianças, possibilitando um diálogo entre suas experiências historicamente vividas com a temática proposta durante a aula (dança, música, culinária, máscaras, indumentária, religiosidade, entre outras). Uma das bases teóricas utilizadas para planejar essas aulas é a autora Lopes (1991), que permite entender e colocar em prática uma aula que favorece a aprendizagem e o desenvolvimento de experiências significativas, pois conforme expõe a autora, deve-se pensar e fazer o uso de uma aula expositiva dialógica, ou seja, durante a explicação, as crianças devem participar e dialogar com o seu conhecimento prévio, sendo estimuladas a refletir e responder questões sobre o tema, compartilhando, produzindo e (re)aprendendo novos saberes. Isto é, ninguém ficará em frente a turma 'passando' conhecimento, mas sim, construindo (ou mesmo desconstruindo) coletivamente o pensamento histórico por meio da troca de experiências.

Neste sentido, através dos eixos outrora descritos (interdisciplinaridade-objeto de ensino-experiência significativa) pode-se pensar a construção do vocabulário brasileiro como exemplo desta dinâmica, afinal, far-se-á o uso da história para explicar o processo de historicidade da língua 'brasileira'; geografia para conhecer e orientar espacialmente os lugares africanos que contribuíram através das suas diferentes línguas; bem como, a própria disciplina de português, a qual pode esmiuçar através de atividades as peculiaridades, sentidos e significados do nosso vocabulário no seu contexto de formação e uso atual. (Ou seja, não podemos pensar a Lei 10639/03 como algo restrito à disciplina ou à docentes de história!) Além disso, através do vocabulário há a possibilidade de pensar a leitura e a escrita em sala de aula, competências fundamentais no processo de aprendizagem. Para pensar nestas duas competências, Freire (1981) fala que não devem ser realizadas de forma exaustiva, mas sim, associadas a leitura de mundo, relacionando com vida prática e realidade próxima.

Portanto, a partir do vocabulário tem-se a possibilidade de conhecer e valorizar o legado afro, perceber o modo como se apresenta no dia a dia através de situações 'sutis', como também, expandir a aprendizagem por meio de leituras e dinâmicas que coloquem em contato com novas formas de ler, sejam contos, poemas, músicas, receitas, entre outros gêneros linguísticos que ressaltem o seu caráter afro brasileiro, dialogando e fomentando o respeito e conhecimento do legado afro, muitas vezes silenciado no processo formativo.

Esclarecidas algumas questões que levaram a realização deste texto, vamos ao nosso foco: as influências do vocabulário africano ao vocabulário português/brasileiro. Para entender este recorte temático temos que retornar a outros contextos históricos, pois conforme argumenta Seffner (1999), devemos correlacionar o passado e o presente, discutindo os fatos históricos a fim de significá-los e dar um tratamento adequado aos seus sentidos. Oliveira (2010) complementa este raciocínio ao dizer que devemos colocar em prática um ensinar e pensar historicamente, relacionando a experiência humana com a vida prática em outros momentos históricos, suas permanências e/ou transformações. Nesta acepção, Lucchesi, Baxter e Ribeiro (2009) descrevem que a primeira adaptação linguística foi realizada no século XVI, através do contato entre portugueses e as comunidades indígenas que povoavam a costa, no qual, por fazerem uso de uma língua "aparentada" ao tronco tupi, eram capazes de comunicar-se por meio de uma espécie de koiné.

Segundo os autores "essa língua franca, que viria a ser denominada língua geral da costa brasileira -- ou simplesmente língua geral" foi utilizada como mecanismo de comunicação pelos portugueses para cooptar a força de trabalho indígena, além disso, quando os evangelizadores iniciaram o processo de expansão da fé cristã, fizeram o uso e reforçaram o emprego dessa língua geral. Acerca do emprego e da disseminação dessa língua colonial, Mendonça (2012) afirma que "os bandeirantes, exploradores da vastidão do Brasil, foram outros propagandistas insuperáveis do tupi", marcando, deste modo, o processo de comunição entre indígenas e europeus.
Com as mudanças econômicas e necessidades de uma nova mão de obra em larga escala e especializada, discorre Castro (s/d) que o tráfico transatlântico trouxe para o Brasil um equivalente entre quatro a cinco milhões de falantes africanos, tendo como principais origens a região bantu e a região "sudanesa". Vale ressaltar que a região bantu compreende um grupo de 300 línguas muito parecidas, entre as quais, no Brasil teve um maior número de falantes de matriz quicongo, quimbundo e umbundo. No que diz respeito às línguas "sudanesas", pode-se afirmar que as mais faladas foram as línguas da família kwa, tendo como principais representantes os yorubás e os "povos de línguas do grupo ewe-fon que foram apelidados pelo tráfico de minas ou jejes". O mapa abaixo demonstra as regiões onde estas línguas faziam-se presentes no continente africano:


Representação da repartição das línguas na África em 1808. MENDONÇA, Renato. A influência africana no português do Brasil. Brasília: FUNAG, 2012.

Com o translado de africanos para a substituição gradual do trabalho indígena, não só a cultura colonial passa por um processo de mestiçagens, como também, as línguas africanas com o português antigo. Partindo dessa ideia, Castro (s/d) ressalta que a densidade de africanos na Colônia Portuguesa deu origem há um contingente de africanos e afrodescendentes superior ao número de portugueses e outros europeus, possibilitando através das relações de trabalho e na convivência diária, a contribuição para a substituição daquela língua geral (com a redução do trabalho indígena vai sendo deixada de lado ou (re) ajustando-se com a nova modalidade linguística do Brasil). Sendo assim, o autor Mendonça (2012) fala que é impressionante a composição do vocabulário africano, visto que, mesmo uma língua sendo distante de outras também africanas, "apresenta os principais elementos formativos de outro grupo qualquer". Nesta acepção, haviam sujeitos denominados como "ladinos" que segundo a autora:

eram aqueles que logo cedo aprendiam a falar rudimentos de português e podiam participar de duas comunidades sócio-linguisticamente diferenciadas [...] Na condição de bilíngües, atuavam como uma espécie de leva-e-traz, o que deu motivo ao ditado popular "diante de ladino, melhor ficar calado", desde quando podiam falar a um número maior de ouvintes, e influenciá-los, resultando daí por adaptarem uma língua a outra e estimularem a difusão de certos fenômenos lingüísticos entre os não bilíngües, no caso, o "escravo novo" e o chamado "escravo boçal", aqueles que não falavam português. (CASTRO [s/d] p.4-5)

Após quatro séculos de contato entre os falantes africanos com a língua portuguesa nas terras brasileiras, Castro (s/d) salienta que o português do Brasil se distanciou do português de Portugal, no qual, ocorreu uma "africanização do português e, em sentido inverso, de aportuguesamento do africano". A autora também afirma que as trocas culturais e linguísticas acompanham o processo de mestiçagem biológica, sendo assim, podemos perceber a adaptação, permanência e assimilação entre o vocabulário português e africano (yorubá e bantu), conforme demonstram alguns exemplos a seguir:

VOCABULÁRIO:
1. Palavras africanas que foram apropriadas pela língua portuguesa, conservando a forma e o significado originais:
a) Simples: samba, tanga, berimbau, maracutaia, forró, capanga, banguela, cachaça.
b) Compostos: lenga-lenga, Ganga Zumba, Axé Opo Afonjá.
2. Palavras do português que tomaram um sentido especial:
a) mãe de santo (yalorixá), dois-dois (ibêji), despacho (ebó), terreiro (casa de candomblé).
b) "O Velho" (Omulu) e "Flor do Velho" (pipoca).
3. Palavras compostas de um elemento africano e um ou mais elementos do português:
a) bunda-mole, espada de ogum, limo da costa, pó de pemba, cafundó do Judas.

MORFOLOGIA E SINTAXE
1.  Adaptar o plural dos substantivos apenas pelos artigos que sempre os antecedem: "as casa", "os menino", "os livro".
2. As línguas africanas também desconhecem a marca de gênero: minha senhor.

 PRONÚNCIA
1. Palavras sempre terminadas em vogais: general: cafezal: "cafezá", mel: "mé".
2.  Não existem encontros consonantais, como ocorre em português: "sarava" para salvar, "fulo" para flor.
3. Transformação do fonema lh pela semivogal y:mulher: "muyé", colher: "coyé".
4. O fonema j passa para o silibizante z: Jesus: "Zezús", José: "Zozé".
5. Palavras que de elocução difícil: negro: "nego", alegre: "alegue".
6. Aféreses: está: "tá", você: "ocê", acabar: "caba", Sebastião: "Bastião".
7. Redução de ditongo: cheiro: "chêro", peixe: "pêxe", beijo: "bêjo", lavoura: "lavora".
8. Formas de tratamento carinhosas: sinhá, sinhô, Iaiá, ioiô.
9) Uso de diminutivos: tardezinha.
10) Repetição de sílabas: babá, bumbum, neném.

Por fim, a partir das ideias do autor Mendonça (2012) é possível perceber como "a própria linguagem infantil tem um sabor quase africano": cacá, pipi, tatá, papato, lili, mimi, dindinho, bimbinha, o que bem demonstra como o modo africanizado permeia nos diferentes eixos da composição do vocabulário tal qual utilizamos hoje. (Re) Conhecer estes elementos é afirmar a contribuição africana ao legado nacional, é entender que mais do 'força de trabalho', os povos africanos contribuíram, mesclaram, transformaram, deram novos sentidos e significados à saberes, sabores, vocábulos, percepções de mundo, formas de ser, atuar e agir. Enquanto sujeitos brasileiros somos africanizados e para descobrir em que, como e onde, precisamos entender os processos de africanidades, sendo este texto, um breve exemplo dessa dinâmica.

Referências

ARAGÃO, M. S. S. de. Africanismos no português do Brasil. Rev. de Letras - Vol. 30 - 1/4 - jan. 2010/dez. 2011. Disponível em:
Acesso em: 17 Mai. 2014.
BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 10 jan. 2003.
CASTRO, Y. P. de. A influência das línguas africanas no português brasileiro. Acesso em: 
FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1981.
LOPES, A. O. Aula expositiva: superando o tradicional. In: VEIGA, Ilma Passos Alencastro (Org.) Técnicas de ensino: Por que não?. Campinas, SP: Papirus, 1991.
LUCCHESI, D.; BAXTER, A.; RIBEIRO, I. O português afro-brasileiro. Salvador: EDUFBA, 2009. Disponível em:
MENDONÇA, Renato. A influência africana no português do Brasil. Brasília: FUNAG, 2012. Disponível em: 
OLIVEIRA, S. R. F. Os tempos que a história tem... In: História: ensino fundamental/Coordenação Oliveira, M. M. D. de. - Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2010. 212 p.: il. (Coleção Explorando o Ensino; v. 21)

SEFFNER, F. Leitura e Escrita em História. In: SCHMIDT, Maria A.; CAINELLI, Marlene R. (orgs.) III Encontro Perspectivas do Ensino de História. Curitiba, Aos Quatro Ventos, 1999.

5 comentários:

  1. Cara Jéssica, adorei seu texto e gostaria de compartilhar minhas buscas etimológicas que faço no doutorado. Estou pesquisando a origem da palavra "ginga" no português brasileiro. Alguns autores atribuem a etimologia ao termo da marinharia que significa “remo de popa e o movimento pivotante a ele assimilado”, cuja origem está no verbo do antigo alto-alemão gigen = oscilar. O que, para mim, é um disparate, visto que é o movimento fundamental da capoeira, arte essencialmente africana. Eu levanto a hipótese de que o substantivo ginga guarda referência à rainha Nzinga Mbandi, chamada Ginga pelos portugueses. Poderia me auxiliar nesta busca? Mostrar caminhos ou autores que possam trazer mais elementos para eu fundamentar minha tese? Agradeço desde já. Atenciosamente, Mariana Bracks

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    1. Olá, muito interessante a sua pesquisa e compactuo com a sua opinião quanto a disparidade do termo em relação ao seu sentido dentro da cultura africana. Eu indicaria um texto que achei fundamental para entender as 'categorias' sociais e a forma como flutuam o seu significado conforme o tempo e espaço através da mestiçagem cultural no Brasil. Não sei se conhece o texto "Dar nome ao novo", do Eduardo França Paiva? Eu tenho a tese dele que fala mais especificadamente sobre essas 'categorias', mas permite pensar em como o domínio da língua possibilita 'dominar' e classificar as pessoas, entende? Talvez conhecer o 'processo' te seja interessante para compreender o 'resultado' ou 'produto cultural' que é a mudança de Nzinga para Ginga, por exemplo. A Princípio, não tenho leituras para indicar textos de forma tão particular, pois penso sempre o vocabulário enquanto sua influência e mescla com o vocabulário português, mas, algo que eu não deixei detalhado neste texto como gostaria é situar melhor os povos que mencionei, sendo assim, indicaria para você tentar mapear por quais povos 'ginga' é utilizada, qual o sentido para cada cultura/povo. Sugeriria também para que você buscasse nos dicionários do XVII, XVIII e XIX para ver o significado que atribuíam a palavra, sua origem... Eu sei que o dicionário de Bluteau tem palavras 'africanas', quem sabe você consiga encontrar a palavra tanto nos dicionários criados para o 'Brasil' quanto para as regiões africanas... isso já vai te ampliando leituras. Como eu só conheço a palavra dentro do contexto da capoeira, se fosse para começar a pesquisá-la, creio que esses seriam os meus primeiros passos de investigação histórica, mapear os seus diferentes usos e significados, contextualizando cada um... Sei que não respondi adequadamente a sua pergunta, mas espero de alguma forma ter ajudado. Qualquer coisa, me conte mais sobre sua pesquisa, assim vamos conversando e pensando nas possibilidades. :)

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  2. Boa noite. Sou coordenador de um NEABI na Faculdade Municipal de Palhoça, em SC, e peço autorização para trabalhar seu texto com a equipe do NEABI. Gostaria de saber como foi a implantação desse projeto com a rede de ensino e se podes comentar sobre os resultados obtidos com as crianças. Parabéns pelo trabalho.
    Jackson Alexsandro Peres

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    1. Boa tarde ^^ Para situar sobre a implementação, destaco que o projeto atua em três escolas públicas e troca de instituição a cada dois anos, ou seja, sempre nos deparamos com novas realidades, o que é muito bom para a experiência profissional e circulação de conhecimento. Já atendemos cerca de doze escolas e fizemos apresentações artísticas e oficinas pedagógicas em outras. Embora a ideia original seja fazer o diálogo das temáticas abordadas com os conteúdos ministrados em sala de aula, o projeto acaba atuando muito mais em forma de intervenções pedagógicas, pois como se trata das séries iniciais e os bolsistas (graduandos em história) vão a cada quinze dias para as escolas, nem sempre é possível esse diálogo entre os conteúdos. Além disso, como abordamos o preconceito, vocabulário, contação de história, dança, percussão, máscaras, pinturas corporais, oralidade, entre outros, nem sempre cabe a uma disciplina específica do dia em que vamos a escola, por isso mencionei a interdisciplinariedade, a partir da qual permitimos um leque de possibilidades para que os docentes possam dar continuidade a temáticas após a intervenção dos bolsistas. Em geral, há uma boa receptividade tanto da temática quanto do projeto, todavia, já ocorreu situações de preconceito por parte dos profissionais da educação, como também, a solicitação de uma mãe para que sua filha não fizesse mais parte das aulas por questões religiosas. Em relação aos resultados obtidos, confesso que já foi algo que perguntei a mim mesma sobre... Creio que o fato de chegar ao final do ano com as crianças conhecendo as africanidades presentes na nossa realidade (e aquelas que NÂO fazem) entendendo a importância do respeito, sobretudo na questão religiosa, é o maior resultado que se pode ter. Não sei se respondi a sua questão, mas caso não tenha ficado claro, fique a vontade para perguntar. A propósito, adoraria conhecer o NEABI que mencionou, acredito que a troca de experiências seria gratificante. :)

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  3. Prezada Jéssica,

    Dentro dessa questão dos termos, conceitos e origens, você crê que é cabível a utilização das teorias de Reinhart Koselleck?

    Grato.

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