AS MULHERES NO CINEMA E O ENSINO DE
HISTÓRIA ANTIGA
José Luciano de A. Dias Filho
Trabalhar com História
Antiga no Brasil sempre foi um desafio por vários motivos, o fato de ser um
período muito distante do tempo vivido é um deles. Por esse fato muitos
preferem estudar a Modernidade, os conflitos sociais do Século XIX e as grandes
guerras do século XX. Para complementar, é adicionado o período Colonial da
América portuguesa, juntamente com o Império Brasileiro e a Proclamação da
República, pelo fim o século XX nos oferece as disputas políticas divididas
entre momentos de ditadura e momentos democráticos.
Então, o que os
antigos têm a nos oferecer? Para François Hartog, o Renascimento estabeleceu
uma equivalência entre o moderno e a Antiguidade, de modo que o ser moderno
significava imitar os antigos, foi sobretudo como uma forma de desembarcar-se
da Idade Média, de romper com ela, relegando-a às trevas. (HARTOG, 2003, p.124)
A Antiguidade não é importante apenas porque faz parte de um espaço na linha
temporal da História do Homem, mas pelo fato de produzir uma base cultural
responsável pelos fundamentos da sociedade. Segundo Norberto Luiz Guarinello, a
História Antiga nos ocidentaliza, pois ela nos insere na linha do tempo, nos
posiciona na História mundial como herdeiros do Oriente próximo, da Grécia e
Roma. Por ela, viramos sucessores da História Medieval, e a História do Brasil
se coloca como uma ramificação da História europeia nos tempos modernos.
(GUARINELLO, 2014, p.13)
Essa discussão em sala
de aula é crucial, é importante deixar claro que as temáticas a cerca da
Antiguidade não são meramente ilustrativas, mas tem uma ligação direta com a
formação do indivíduo. É preciso salientar que os vestígios antigos não são
restos de um passado distante, mas partes de uma memória viva, que se comunica
com o presente. Uma ótima forma de criar uma ponte sobre essas discussões são
com filmes, o cinema tem uma incrível capacidade de representar o passado; não
é incomum filmes ambientados na Antiguidade virarem sucessos de bilheteria como
Tróia "2004" e 300 "2006".
É necessário salientar
que o filme não é uma produção historiográfica, mas sim uma obra de arte, logo
ele não nem tem comprometimento algum com a veracidade histórica. Ainda assim a
sua exclusão nas salas de aula como uma ferreamente de ensino é uma atitude
irreflexiva, por mais que um professor tente evitar, os próprios alunos acabam
assistindo tais filmes e quando o assunto da aula for Grécia Antiga, a
associação aos filmes Tróia e 300 é direta. É mais proveitoso usar o cinema
como um aliado no ensino, dispor das vantagens que o filme tem em alcançar
grandes públicos ou até mesmo de ser uma forma lúdica de aprendizagem, e se
preciso, usar os próprios erros do filme em seu favor. "A história não são
apenas palavras impressas, mas impressas em páginas que, na maioria das vezes,
estão reunidas em espessos tomos cujo peso e volume ajudam a ressaltar a
solidez das lições ensinadas." (ROSENSTONE, 2010, p.15)
Mediante a capacidade
do cinema de explorar o passado, gerando debates e discussões, e trabalhando o
filme como uma ferramenta no ensino de História Antiga, me proponho a utilizar
os filmes Electra, a vingadora (1962) e Ágora (2009) como recursos para
repensar o papel e a forma de viver das mulheres na Antiguidade. Por muito
tempo acreditou-se que a mulher estava restrita ao oikos, isolada da
participação política e limitada nas atividades sociais. Ainda assim peças
gregas como as de Eurípides (480- 406 a.C) e mulheres como Hipátia, (370-415
d.C) nos revela que havia exceções, a mulher nem sempre era tão passiva quanto
a sociedade ordenava.
Electra, a vingadora
(1962) é um filme grego dirigido pelo renomado cineasta Michael Cacoyannis, a
obra é uma adaptação de uma das peças do tragediógrafo Eurípides. A trama de
Electra se consiste na vingança pela morte de seu pai, Agamenon, o rei de
Micenas. Após o seu demorado retorno da Guerra de Tróia, Clitemnestra, sua
própria mãe, juntamente com o amante Egisto assassinam Agamenon. Mesmo sendo a
filha do rei, Electra não tem poder para se vingar, sua condição não permite
tal ato. O único direito que Electra tinha era o de se lamentar no funeral do
pai, porem nem isso Egisto permitiu. As lamentações serviam como uma
forma de protesto e incentivo a vingança, pois a lamúria fúnebre atuava como
uma forma de comunicação com o morto. Uma forma de gerar nas pessoas um
sentimento de solidariedade na dor da perda, para que fosse motivado o ato da
vingança. (SILVA, 2011, p.120) O ato da vingança era papel do homem, no caso
seu irmão mais novo, Orestes, que foi exilado ainda na infância para que uma
vingança futura fosse evitada.
Segundo Marilyn A.
Katz, a partir da perspectiva de ideais sociais, os espaços da polis eram
segregados: a esfera pública pertencia aos homens, enquanto que as mulheres
estavam presas ao domínio do lar. (CARTLEDGE, 2009, p. 164) Nem todos os ideais
de uma sociedade são seguidos integralmente, existem exceções tanto nas
sociedades atuais quanto nas antigas. Eurípides faz questão de mostrar em sua peça
que a mãe de Electra é um modelo de mulher não convencional comparado aos
ideais sociais dos gregos antigos. Após o irmão mais novo de Electra matar
Egisto, marido de sua mãe, ela fala: "O marido da mulher e não o inverso.
É um vexame a mulher cantar de galo em casa e não o homem".
(Eurípides, 2009, p.116) E mais adiante ela continua: "Não quero como
esposo alguém com ares frufru, mas com jeito macho" (Eurípides, 2009,
p.116) É bem possível que durante a Antiguidade Clássica, período em que a peça
foi escrita, existissem mulheres que mandavam na casa e homens que não tinham a
autoridade devida para com suas esposas.
A vingança do assassinato do pai de Electra só pode ser completa com a morte de sua própria mãe, mas Orestes fraqueja no momento de cometer o matricídio. Electra se apresenta forte e decidida, enquanto Orestes perde a coragem pensando no horror que é matar a própria mãe. Nessa cena esquecemos a condição de submissão da mulher, Electra se torna agente direta da trama que vivencia, diferentemente de seu irmão.
A vingança do assassinato do pai de Electra só pode ser completa com a morte de sua própria mãe, mas Orestes fraqueja no momento de cometer o matricídio. Electra se apresenta forte e decidida, enquanto Orestes perde a coragem pensando no horror que é matar a própria mãe. Nessa cena esquecemos a condição de submissão da mulher, Electra se torna agente direta da trama que vivencia, diferentemente de seu irmão.
O filme Ágora (2009)
dirigido por Alejandro Amenábar, é um filme biográfico. Ele conta a história de
Hipátia, filha de Teón, um grande matemático de Alexandria. Desde nova ela
demonstrou interesse pelos estudos do pai, mas também se dedicou bastante a
filosofia. É possível estudar a figura de Hipátia como uma exceção na sociedade
do Império Romano, sua intelectualidade era muito reconhecida, alunos de muitos
lugares vinham apenas para estudar com ela.
"Ao contrário, por exemplo, das atenienses,
era permitido à mulher casada romana sair de casa, desde que vestida
adequadamente, freqüentar teatros, feiras e tribunais e sendo respeitada. O
casamento era uma cerimônia solene, onde estava representada a passagem da
tutela do pai sobre a filha para o marido." (MONGELÓS, 2011, p.3)
O detalhe crucial é
que Hipátia não era casada, após o falecimento de seu pai ela fica sem nenhum
tipo de autoridade masculina sobre ela, já que o casamento representa a
transferência de tutela do pai para o marido. No entanto, ela não teve as
atividades restritas em Alexandria, continuava ensinando e tendo influência nos
assuntos da cidade. É possível considerar até mesmo que Hipátia atuava
diretamente na política de Alexandria, não que ela exercesse algum cargo
público, mas falava livremente entre as autoridades de Alexandria, como
Orestes, o prefeito da cidade.
Segundo Ana Clara
Cabeceira, Hipátia tinha uma grande importância política na cidade. Graças a
ela, Orestes, pôde formar um grupo político tendo o apoio até mesmo dos judeus.
Era claro e todos viam que o prestígio de Orestes aumentava com a ajuda de
Hipátia. Até mesmo o bispo Cirilo, que espalhava mentiras sobre ela, como
acusações de feitiçaria. (CABECEIRA, 2014, p.17-18) No filme essa importância
política não é tão clara, mas muitas cenas mostram Hipátia dando sua opinião a
cerca dos conflitos na cidade, mesmo sendo sempre oprimida.
Hipátia vivencia um
momento de forte intolerância religiosa, o cristianismo havia se tornado a
religião oficial do Império desde 380 d.C., e o formato de vida da filosofa
atraia a tenção dos cristãos.O Império Romano era cristão, Hipátia logo deveria
ser casada e se dedicar a criação dos filhos, de acordo com modelo de vida
cristão imposto as pessoas. Mas ela foi o oposto, era influente na cidade, não
se declarava cristã e participava ativamente da política da cidade. Uma exceção
do modelo de vida feminino em que estamos acostumados de ver na Antiguidade.
Sabe-se que a
imposição rigorosa do modo de vida para as mulheres não era algo da tradição
helênica, embora não sugeria a igualdade de gêneros, mas também não rebaixava
tanto a mulher. Pode-se admitir que esse tratamento tão desigual veio com o
cristianismo. A imagem das mulheres, desde a Antiguidade, é ligada de
alguma forma à heresia. A figura das "mulheres heréticas", fez com
que no decorrer da história da Igreja Católica as mulheres fossem privadas dos
cargos eclesiásticos. Essa associação das mulheres com a heresia revela o
tamanho da opressão patriarcal com que elas foram tratadas no decorrer da
história da Igreja. (CABECEIRA, 2014, p. 33, 37)
Para Marc Ferro, o
filme não é apenas um agente histórico por desempenhar um papel ativo
contribuindo para uma conscientização, mas é uma contra-análise da sociedade.
(FERRO, 2010, P.11) Os filmes trabalhados são representações da Antiguidade,
mas refletem a sociedade e o tempo em que foram produzidos, logo a partir da
trama inserida no filme é possível analisar a forma como a História Antiga é
apresentada ao público ou que tipo de discussões o cinema pretende gerar. Os
debates sobre gênero tem sido intensos na nossa sociedade, e de muitas formas
chega à sala de aula. O cinema é um dos meios em que o professor pode explorar
esses e outros assuntos, fazendo uma ponte entre o passado e atualidade.
Diante dos dois filmes
trabalhados, podemos notar que mesmo sob a opressão e exclusão feminina de suas
respectivas sociedades, tanto Electra quanto Hipátia são representadas nos
filmes como figuras que lutam por aquilo que acreditam. A representação da
História Antiga no cinema não só abre discussões sobre a vida feminina durante
a Antiguidade, mas nos propõe a refletir debates presentes na nossa própria
atualidade.
Referências
CABECEIRA, Ana Clara
da Silva. A vida de Hipácia de
Alexandria: Representações de Gênero na Antiguidade tardia. Brasília:
2014.
CARTLEDGE, Paul. História ilustrada Grécia Antiga. São
Paulo: Ediouro, 2009.
Electra(s)/ Sófocles, Eurípides: tradução: Trajano
Vieira-São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.
FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo: Paz e
Terra, 2010.
GUARINELLO, Norberto
Luiz. História Antiga. São Paulo:
Contexto, 2013.
HARTOG, François. Os Antigos, o passado e presente.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003.
MONGELÓS, Rodrigo. A
condição da mulher no Império Romano: noções jurídicas e sociais. Anais do II Encontro Nacional de Produção
Científica- GPDH. Universidade Estadual de Santa Cruz- Bahia, 2011.
ROSENSTONE, Robert A. A História nos filmes, os filmes na
História. Paulo: Editora Paz e Terra, 2010
SILVA, Maria de
Fátima. O trabalho feminino da Grécia
Antiga: lenda e realidade. Portugal: Universidade de Coimbra, 2007.
SILVA, Talita Nunes: As estratégias de Ação das Mulheres
Transgressoras em Atenas no Século V a.C. Dissertação(Mestrado)-
Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia,
Departamento de História, 2011.
XAVIER, Nathalia
Agostinho (org.) Catálogo de Filmes: A
Idade Média no discurso fílmico. Rio de Janeiro: PEM, 2013.
Prezado José. Parabéns por trabalhar com a questão da mulher na antiguidade através da mídia cinematográfica, que por si só, já é um material valiosíssimo se utilizado na educação com propósitos bem definidos. Como bem mencionas na tessitura realizada acima, e concordo com ela quando afirmas que “o filme não é uma produção historiográfica, mas sim uma obra de arte, logo ele não nem tem comprometimento algum com a veracidade histórica.” Penso que nessa questão entra o papel do professor como mediador. Matos disserta que o filme não é capaz de fazer com que os estudantes compreendam os fatos históricos sozinhos, cabe ao professor orientar o processo de aprendizagem quando utilizado o filme como ferramenta em sala de aula. Nesse sentido, questiono você sobre o papel da mulher no cinema.. Na maioria das vezes as mulheres são retratadas nas mídias cinemáticas como submissas, como donas de casa e etc,. Em sua opinião, não seria interessante neste caso utilizar aspectos e artefatos culturais da atualidade, como por exemplo o paepl exercido pela mulher nos dias de hoje para confrontar as ideias expostas nas películas que retratam a mulher como submissas, ou como apenas donas de casas?
ResponderExcluirUm abraço
Luiz Paulo Soares
Gostei do artigo!
ResponderExcluirPensaste se o uso desses materiais não pode estabelecer um link com a modernidade, dando sentido ao estudo da história antiga como fundamento das civilizações ocidentais?
saudações,
André Bueno
O trabalho com filmes pode incorrer na construção de novos estereótipos sobre o papel da mulher na antiguidade?
ResponderExcluirAss. Leticia Trzaskos
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirOlá Luciano,
ResponderExcluirGostei muito de seu texto porque dá novas alternativas para se trabalhar história antiga na sala de aula. Mas a minha pergunta é a seguinte: A escolha "Electra" é uma representação cinematográfica em preto e branco. Para os alunos, hoje, com toda a gama de informações e de efeitos hollywoodanos, não seria confirmar que a história antiga continua sendo algo distante da realidade dos mesmos? Ou ainda pior, confirmar as falsas ideias que se tem sobre a história antiga ser enfadonha?
att,
Filipe Matheus Marinho de Melo