Cesar Guazzelli

A VIOLÊNCIA COMO LINGUAGEM: UM HORIZONTE TEÓRICO PARA A HISTORICIZAÇÃO DA CULTURA DA VIOLÊNCIA

César Henrique Guazzelli e Sousa



A relação existente entre índices de educação e índices violência, ainda que seja amplamente debatida nos mais diversos meios e a partir dos mais variados espectros, não recebe a atenção merecida das autoridades competentes, particularmente dos poderes executivos no Brasil. Ou seja, embora existam estudos de amplo espectro sobre o assunto conduzidos por instituições sérias e profissionais extremamente competentes (Abramovay, Waiselfisz, Pino, Boneti, Gonçalves, Sposito, Laterman, Priotto) não percebemos a aplicação dos resultados na forma de políticas públicas efetivas e nos e nos ambientes escolares. A agudeza da situação, facilmente perceptível por nós, torna-se clara quando constatamos que a maioria das pesquisas conduzidas no Brasil não se sustentam na elucidação das relações existentes entre a instrumentalização da educação e a redução da violência, e sim na chamada 'violência escolar'.
       
Dessa forma, os estudos brasileiros têm como ponto de partida uma realidade material tão precária que a escola, que deveria ser percebida como um ambiente de socialização, cidadania e aprendizado, torna-se uma reprodutora da violência cotidiana. A instituição que deveria ser o eixo central das políticas de longo prazo para a diminuição da violência social não faz parte da solução, e sim parte do problema. Os jovens infratores, especialmente aqueles imersos em uma cotidianidade profundamente violenta, adotam a hostilidade e a crueldade como atitudes semióticas. Habituados a ambientes familiares e comunitários em que o diálogo e as instituições do Direito não têm qualquer efetividade, adotam a violência como linguagem. Nessa perspectiva, a violência não é simplesmente uma força material. Ela é o uso da força como ferramenta para ações humanas intencionais e carregadas de sentido, seja este sentido individual ou coletivo (LEMKE, 1995).
       
Conforme aponta Ricoeur (1998) a questão da linguagem  em confronto com a violência não está relacionada com problema da estrutura, mas antes disso com o problema do sentido, do sentido racional, ou seja, o esforço de integrar em um entendimento inclusivo o relacionamento do homem com a natureza, do homem com o homem, com a existência e, finalmente, a relação mesma entre violência e linguagem. Nessa relação, o autor defende que nós nos acostumamos a relacionar a linguagem e a violência como opostos, "os opostos mais fundamentais da existência humana" (RICOEUR, 1998, p. 40). Se a linguagem é um instrumento da civilização, então a violência é um instrumento da barbárie. Se a linguagem é diplomacia, a violência é a guerra. Se a linguagem é a compreensão, a violência é a cólera. Essa compreensão antitética torna particularmente difícil assumir os atos de violência como expressões antropológicas, como operações dotadas de sentido que, para serem adequadamente compreendidas devem ser investigadas a fundo.
       
Devemos questionar, portanto, as implicações práticas que derivam da oposição entre discurso e violência.  A adesão ao argumento do diálogo e do sentido em oposição à violência - assumida como o outro lado da fronteira do sentido -  é um lugar confortável, a partir do qual os indivíduos encontram salvaguarda contra a acusação de serem apologistas do ódio, do gládio. O recurso à violência, dessa forma, sempre permanece "uma culpabilidade limitada, uma falta calculada; aquele que reconhece um crime como crime já está no caminho do sentido e da salvação" (RICOEUR, 1998, p. 40). Mais do que o discurso da não-violência, acreditamos na não-violência do discurso.
       
O recurso ao pacifismo, a ode ao homem que se recusa a responder à violência com violência, caminha lado a lado com a justificação da violência como instrumento de regeneração social (SLOTKIN, 2000). O gesto do pacifista aponta para uma utopia, o testemunho de um futuro almejado. Porém, as constrições da realidade demandam dos homens, dentro de certas situações, a necessidade de imporem certas vontades - individuais ou coletivas - pelo uso da força. Estas duas formas de ação, conforme Ricoeur (1998), correspondem, respectivamente, à moralidade da convicção e à moralidade da responsabilidade. No primeiro caso, a ação deontológica, que condena a violência com veemência e de forma absoluta, é ilustrada com um modus vivendi avesso à corrupção da ação violenta. No segundo caso, a ação teleológica, que reconhece a necessidade do uso da violência em determinadas situações, se justifica pela percepção de que ela era a 'última ou única opção'.

A utilização da violência como linguagem, evidentemente, associa-se a esse segundo tipo de moralidade. Entre os jovens latino-americanos em particular, especialmente aqueles que vivem em ambientes de abandono, às margens da assistência estatal e da comoção social, a violência se revela como uma forma de auto-afirmação. Ela é um instrumento que busca reivindicar prestígio pessoal e respeito comunitário em agrupamentos sociais onde o mito do 'homem que se fez do nada' é levado em alta conta. Ela é um desafio à ordem das coisas imposta pelo status quo e pelo Estado de direito, que os impede de ter acesso a determinadas benesses materiais e simbólicas. Assim, muito além das estatísticas, das ações repressivas, da integração e diálogo entre a Educação e a Segurança Pública, é necessário entendermos os sentidos que constituem a cultura da violência, das energias que movem os jovens a repudiarem a educação formal e abraçarem a violência como uma marca identitária.
       
De acordo com Salete Valesan (2015, p. 9), a violência pode ser entendida como "uma linguagem cujo uso é validado pela sociedade, quando esta se omite na adoção de normas e políticas sabidamente capazes de oferecer alternativas de mediação para os conflitos que tensionam a vida cotidiana". Ainda segundo a autora, a sensação de impunidade provocada por fatores como a lentidão dos processos judiciais, o investimento insuficiente nos aparatos de investigação policial e a falta de respaldo físico e financeiro para que as sanções penais aplicadas aos infratores sejam de fato cumpridas são elementos que sinalizam significados para a sociedade. Tais significados sintetizam-se na percepção de que "a violência é tolerável em determinadas condições, de acordo com quem a pratica, contra quem, de que forma e em que lugar" (Idem).
       
Os números dessa cultura da força e da agressão são alarmantes. Entre 1980 e 2012, aproximadamente 497.570 jovens entre 15 e 29 anos foram vítimas fatais de armas de fogo. Isso corresponde a 56,5% do total de vítimas no período. Enquanto na série histórica o crescimento do número de homicídios no Brasil foi de 387% em 22 anos, entre os jovens esse percentual é de 463,6% (WAISELFISZ, 2015, p. 23). Se tomarmos o Índice de Vitimização Juvenil por Armas de Fogo (IVJ-AF) como referência, a situação é ainda mais alarmante. Morrem 285% mais jovens do que não-jovens no Brasil. Não é por acaso. A cultura da violência brasileira não é um fenômeno isolado. Em toda a América Latina, assim como na maioria dos países africanos, números estatísticos similares aos aqui apresentados são encontrados. O uso da violência como linguagem vincula-se a uma herança colonial e imperialista. Entre os 50 países com maiores taxas de homicídio no mundo, 48 se encontram em um desses dois continentes. A cultura da violência é um substrato da desigualdade, subproduto de uma ordem mundial que impõe aos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento constrições econômicas que perpetuam a desigualdade social, a subvalorização da educação formal e a feitichização do progresso material individual.
       
A percepção da violência como linguagem, como ação embasada em um conjunto de signos socialmente compartilhados e, por isso, dotados de sentido, cria uma inversão fundamental para o seu estudo. Os atores sociais, antes vistos como sujeitos passivos das constrições sócio-econômicas, se tornam agentes sociais. A partir de uma perspectiva estritamente socioeconômica, que credita unicamente à dominação e às constrições de subdesenvolvimento os surtos de criminalidade presenciados em países como Honduras, Venezuela, Brasil ou África do Sul, cria-se um modelo que assume a cultura da violência como resultado da falta de opção dos marginalizados. Essa perspectiva é muito bem ilustrada em Ianni (1970, p. 18), segundo o qual a relação intrínseca entre violência e dominação econômica na América Latina é resultado direto de dois processos complementares; por um lado, o ocaso da política de desenvolvimento econômico destinada a criar um 'capitalismo nacional' em alguns países latino-americanos (como é o caso do Brasil). Por outro, o também insucesso da política liberal de 'capitalismo associado'. Estes dois processos, ainda de acordo com o autor, se desenrolaram em um contexto de profunda dependência econômica e desigualdade social. Na América Latina, tanto do ponto de vista do desenvolvimento alicerçado em medidas protecionistas quanto dentro de uma perspectiva liberal, o crescimento econômico andou lado-a-lado com o aprofundamento das desigualdades sociais e regionais. Por essa lógica, aonde houver dominação imperialista e desigualdade, encontraremos instaurada a cultura da violência.

Não podemos ignorar, contudo, que houveram processos análogos em outros países fora da América Latina e da África, como por exemplo Índia e Nepal. Apesar da desigualdade acachapante e dos séculos de dominação imperialista, eles apresentam níveis de violência social consideravelmente baixos quando comparados com o restante da América Latina. Na Argentina, Chile, Uruguai e Peru, os índices também se apresentam em níveis toleráveis (ou controlados) quando contrastados com o restante do cone sul. Portanto, e isso nos parece bastante óbvio, devemos ir além do determinismo econômico para compreendermos a cultura da violência.

Ao considerarmos a existência de uma linguagem da violência, da atribuição de sentido dos atores sociais às ações atentatórias contra o 'outro', construímos um modelo analítico que, por um lado, atribui aos agentes sociais em contextos de violência a responsabilidade por seus próprios atos. Por outro, avançamos além da perplexidade com a situação imposta; as ações pedagógicas, as políticas de segurança pública e de assistência social devem partir sempre da compreensão de que determinados contextos de violência generalizada não são a barbárie - a ausência de civilização e de significação às ações individuais. Elas não são o avesso da cultura. Muito pelo contrário, os sujeitos que agem de forma violenta e atentatória o fazem como forma de produzir sentido, de serem vistos, de dialogarem com a sociedade, ainda que esse diálogo, dentro de nossa herança racionalista/iluminista, seja hediondo.
       
A compreensão da violência como linguagem, deixo bastante claro, não significa a concordância com a cultura da violência. Muito pelo contrário, ela nos fornece um instrumento compreensivo para os contextos sociais de violência generalizada, creditando a cada sujeito a responsabilidade por seus próprios atos e, assim, tornando possível a ação social, pedagógica, política e jurídica não mais com base na premissa da hipossuficiência e da exclusão, mas com base em esforços que busquem, simultaneamente, enfrentar a cultura da violência por meio da educação e neutralizar os seus resultados mais nefastos por meio de ações jurídico-políticas que penalizem devidamente os indivíduos pelos seus atos, e não toda a sociedade.

Referências

SLOTKIN, Richard. Regeneration through violence: the mythology of the American frontier. 1600-1860. Oklahoma: University of Oklahoma Press, 2000.
LEMKE, J.L. Textual Politics: Discourse and Social Dynamics. Washington, D.C.: Taylor & Francis, 1995.
WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência: mortes matadas por armas de fogo. Brasília: Juventude viva, 2015.
RICOEUR, Paul. Violence and Language. Bulletin de la Societé Américaine de Philosophie de Langue Française. Volume 10, Issue 2, Outono de 1998. Pp. 32-41.

IANNI, Octavio. Imperialismo y cultura de la violencia en America Latina. 12. Edição. Cidade do México: Siglo Veintiuno Editores, 1970.

8 comentários:

  1. Prof. César,
    muito obrigada pelas suas reflexões! Vou fazer apenas dois comentários: um somente reiterando e o outro é uma pergunta.

    Reiterando:
    "A percepção da violência como linguagem, como ação embasada em um conjunto de signos socialmente compartilhados e, por isso, dotados de sentido, cria uma inversão fundamental para o seu estudo."
    A princípio, parece uma conclusão simples: só estamos reconhecendo que a violência, assim como quaisquer outras atitudes humanas, possuem sentido e intencionalidade. A violência não está fora da cultura, porque, afinal, nada está. Mas é importante que sempre se frise isto até que, na escola, todos os agentes realmente partam desse princípio. As soluções que se têm dado para situações de violência que acontecem dentro da escola ou com indivíduos que frequentam as escolas parecem não levar isso em consideração. E com isso, nas escolas, reproduzimos estigmas, judicializamos, trazemos a polícia, somos violentos, etc.. porque não se tenta, de fato, entender a lógica e os sentidos das violências.


    Pergunta:
    "O uso da violência como linguagem vincula-se a uma herança colonial e imperialista. (...) A cultura da violência é um substrato da desigualdade, subproduto de uma ordem mundial que impõe aos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento constrições econômicas que perpetuam a desigualdade social, a subvalorização da educação formal e a fetichização do progresso material individual."
    Logo depois deste trecho, você questiona o determinismo econômico na explicação para a origem da violência. Você poderia indicar leituras que expliquem porque a cultura da violência se relacionaria com as desigualdades sociais?


    Obrigada!

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  2. Professor César Henrique, bom dia.

    Leitura de riquíssimo conteúdo. Vivencio essa violência todos os dias. O contexto onde trabalho (dou aulas) está mergulhado nessa realidade citada acima. No intuito da defesa em relação a alunos indisciplinados e "violentos" temos agido com muita cautela. Porém temos apelado para o Conselho Tutelar. Esse órgão tem sua importância, mas no tratamento de situações escolares em que a violência é tipo "linguagem" , será que as leis , representadas por tais órgãos tem de fato uma "efetividade" para a resolução de questões ?

    PRISCILA MORGANA GALDINO DOS SANTOS

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  3. Professor César Henrique,boa tarde. Se o Estado na concepção de Max Weber é a instituição que tem ¨o monopólio da violência legítima¨e se criminalidade e violência de adolescentes e jovens infratores não estão relacionados apenas à exclusão econômica, não estariam os detentores do poder público de todas as esferas praticando a violência invisível ao negar efetivas políticas públicas?

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  4. Professor César Henrique,desculpe-me,só agora reparei que os leitores devem se identificar. Sou Laura Moriyama. Fiz o comentário/pergunta sobre Weber e linguagem/violência invisível. Obrigada

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  5. Olá! Parabéns pelo texto.
    Nunca pensei muito nessa questão de violência dentro das escolas, após ler o seu texto algumas duvidas surgiram. Até que ponto o professor deve interferir nessas brigas? Como identificar quando é apenas uma briga de momento ou algo mais sério que vai acarretar em consequências graves? E como professora de que forma eu posso trabalhar esse assunto com os alunos dentro da sala de aula? Se é que isso é possível.
    Grata pela atenção!

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  6. Boa noite professor César!

    Essa questão cultural é muito forte no Brasil, e só vamos ter mudanças quando a sociedade se conscientizar, pois a violência começa dentro de casa, com agressões ou situações financeiras, vai para a escola, onde há professores que não se representam, que entram no "SISTEMA", cruzam os braços esperando sua aposentadoria e não fazem nada pela sociedade, e chega até os alunos que vivem a pós modernidade, onde há perca de valores e o capitalismo é uma doença. A educação não muda pela lei, ela muda pela cultura, pela sociedade.

    Patrícia Souto da Silva.

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  7. Bom dia ,professor.
    Ao selecionar os textos que iria ler e comentar ,o seu foi um dos primeiros a me chamar a atenção e ao lê-lo ,vi que foi muito bem escrito.
    Concordo que os professores de Historia,principalmente,sempre ensinam a violência,na forma das guerras,das batalhas,dos guerreiros,generais ,estratégias,e demais aparatos relacionados com a violência.
    Também ,a violência quando ensinada de um ângulo historiográfico,tende a despertar a não-violência e a compreensão;bem,ao menos deveria.
    Parabenizo sua coragem ao tratar eese tópico.
    Pergunto:
    Acredita que as diversas formas(mídia,filmes,mapas,gravuras,imagens,debates,documentarios,objetos/0 de se ensinar a violência histórica acarretaria em uma má interpretação por parte de um meio acadêmico ou escolar?
    Exemplo:falar e mostrar objetos do regime nazista,poderia ser interpretado erroneamente como apologia ao ?
    Qual(s) critério(s) a ser usado nesse tipo de abordagem metodológica?
    Muito obrigado.
    Wander Alexandre Araújo Miranda

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  8. Boa noite Cesar Guazzelli,
    Gostei muito do seu texto que me chamou atenção devido ao que observamos e vivenciamos nas salas de aula diariamente. Existe uma linguagem corporal e verbal nos nossos jovens que se baseia na violência, seja nas pseudo brincadeiras, no bulling ou na violência física e verbal de fato.
    Muitos jovens valorizam estas atitudes violentas e entendo que elas são uma forma de inserção e status dentro do grupo. As músicas, as atitudes e linguagem que usam confirmam esta tendência.
    Como defensora da paz e educadora sinto-me impotente, perante a força desta cultura da violência, em desenvolver no ambiente escolar uma cultura de paz e respeito. Palestras, debates, conversas com psicólogos e psicoterapeutas não estão surtindo os efeitos desejados.
    Como podemos tentar mudar estes valores de culto a violência nas nossas escolas? Conhece alguma estratégia ou exemplo de sucesso?
    Muito obrigado pela sua atenção e reflexões sobre este tema tão presente e importante na nossa sociedade.
    Cristina Saddi Portela

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