Graziella Queiroz e Manoel Caetano

CIÊNCIAS HUMANAS E ENSINO DE HISTÓRIA: ENTRE CONCEITOS, PRÁTICAS ESCOLARES E PARADIGMAS SOCIAIS

Graziella Fernanda Santos Queiroz
Manoel Caetano do Nascimento Júnior



Introdução

O ensino de História vem sendo com frequência repensado. Ideais consolidados por concepções iluministas bem como o enquadramento da disciplina no campo da ciência, limitou seus atores e acontecimentos. A História não pode ser baseada em generalizações e classificações de resultados, consequentemente seu ensino não deve se enquadrar em uma narrativa linear de fatos seletos e episódios simbólicos. Pensar nisso é questionar a dinâmica social da contemporaneidade.

Pensamentos ligados a uma maneira tecnicista e positivista de encarar o mundo precisam ser revistos através de debates e análises dos meios. Problematizar o papel da escola, a atividade docente, e suspender visões que restringem a participação do aluno o tornando, agora, ativo e central no processo pedagógico é um trabalho que exige sensibilidade e intelectualidade. O presente trabalho discute as indagações supracitadas apoiando-se principalmente nas análises da Teoria Crítica e História Cultural.

Onde tudo é ciência: uma breve análise do iluminismo e das ciências humanas

O surgimento do iluminismo ou ilustração, no fim do século XVII e início do século XVIII traz à modernidade a exaltação da razão como único caminho para alcançar o conhecimento bem como a liberdade e autonomia. O estímulo ao questionamento, à investigação e à experimentação servia como forma para compreender a sociedade, política, natureza e o Homem. Dessa maneira, a individualidade, a autonomia e a universalidade se tornam frutos diretos da razão.

Não se pode negar os avanços intelectuais consagrados por essa linha de pensamento, como por exemplo, a separação com o conservadorismo dogmático compenetrado anteriormente em todos os aspectos da sociedade estabelecido pela igreja católica.

Entretanto, a mesma ideia racional consagrada pelo iluminismo foi usada como instrumento de dominação em direção às classes inferiores. A exploração das Américas, a sobreposição de “raças” e povos em detrimento de outros, as duas Grandes Guerras Mundiais, tendo como exemplo, transformaram vivências sociais em verdades absolutas comprovadas pela ciência justificando as barbáries cometidas pelos europeus.

É fundamental então estar atento sobre esse discurso da razão ocidental e perceber que ele atingiu diferentes campos sociais e do saber.

Nesse sentido, tratar de ciências humanas é reconhecer o privilégio dado às disciplinas exatas, como matemática, física e química e verificar a transformação das disciplinas humanistas em tendências cientificistas.

Percebe-se, pois, que apesar de o campo científico da natureza ter conquistado glórias na vida humana devido a descobertas como a penicilina e a fermentação esse progresso pormenoriza as relações humanas no que tange aos seus variados sentidos e representações quando as força tendenciosamente para o campo das leis universais.

Logo, se tem o propósito de aqui esgrimir o momento no qual essa razão posta em prática nas escolas no ensino de História ao invés de ajudar humanos a se tornarem críticos, se tornam subservientes e/ou apáticos.

O ensino de História no campo das Ciências Humanas

Eis então uma consideração importante: o ensino de História está intrinsecamente tomado de relações de poder e se molda de acordo com os pensamentos da sociedade da época. A História do ensino de História no Brasil se cruza com a própria cultura escolarizada no país. O autodidatismo foi presente ao longo de nossa vivência como país dito colonizado. A questão do letramento, dos conhecimentos matemáticos e de instruções voltadas para moral dogmática herdada dos jesuítas foram presentes ao longo da nossa trajetória nas classes mais favorecidas (FARIA FILHO,2015).

Desde sua entrada nos currículos oficiais brasileiros que vai de 1838 até 1950, segundo Laville(1999), estudar História nas escolas não era nada mais do que uma forma de educação cívica.

Seu principal objetivo era confirmar a nação no estado em que se encontrava no momento, legitimar sua ordem social e política e ao mesmo tempo seus dirigentes e inculcar nos membros da nação vistos, então, mais como súditos do que como cidadãos participantes o orgulho de a ela pertencerem, respeito por ela e dedicação para servi-la (LAVILLE,1999, p.126).

Só então entre meados de 1970 e 80 através das influências de acontecimentos mundiais, dos estudos marxistas e também do campo das ciências humanas, diferentes intelectuais repensam a ordem mundial e as consequentes problemáticas nos currículos escolares das áreas humanísticas.

Segundo pensadores da Teoria Crítica, a História, nesse sentido, vista como construção de relações que envolvem múltiplas dimensões humanas e expressa caráter descontínuo entre indivíduos e classes é capaz de dá luz à compreensão de fenômenos sociais, logo não pode ela ser relacionada à exatidão e àquela racionalidade que ao invés de emancipatória se torna instrumentalizada e de certa forma alienada (HORKHEIMER,1991).

No espaço histórico, diferentes tendências historiográficas auxiliam no processo de debate em torno de novas maneiras de ensinar História. A escola dos Annales que tem como grande destaque a interdisciplinaridade e apoio nas diferentes ciências da humanidade para ampliar as discussões e possibilidades do estudo histórico, merece grande destaque, entretanto, parece ter sido superada pela Nova História e mais recentemente pela História Cultural. A nova história diferentemente dos que propuseram a História total dos acontecimentos, propõe a quebra da história estrutural e junto a ela os paradigmas reforçados na História Tradicional.

Novos objetos, novos problemas e novas abordagens, como ressalta (BURKE, 1992, p.9). A história nova pode ser definida por tudo que ela não é se relacionada à tradicional. Uma história que fale de diferentes atores mostrando as diferentes perspectivas de um mesmo acontecimento, que use diferentes tipos de documentos, como imagens e fontes orais e considere a cultura como elemento fundamental das sociedades humanas são uma das características relevantes desse domínio.

Mas a grande questão é: por que será que apesar de tantas propostas sobre o que é importante ensinar e aprender em História, se permanece nesta o caráter enciclopédico e/ou cívico herdado do positivismo?

Uma proposta relevante: trabalhar com contextos, identidades e memórias

Um dos grandes problemas ressaltados por diferentes alunos durante nossa vivência tanto como discentes como educadores é a alegação de que a História trabalha com “coisas” distantes demais da realidade deles ou “velhas”. Fica perceptível ai que há ausência de ação didática necessária que explicite as ligações entre coisas que parecem desconectas e sem contexto para os estudantes.

Mas então em que se basearia uma ação didática eficaz? Pensamos que a abordagem histórica precisa se voltar tendenciosamente para os pressupostos da História Cultural, onde se considera que as sociedades constroem sujeitos conscientes de seu tempo e representam a realidade de acordo com os signos culturais por eles herdados através de suas experiências e memórias. O mesmo acontecimento histórico pode ser revisitado várias vezes e ainda assim ele não estará acabado.  Multiplicam-se ainda mais os objetos, as fontes e o campo temático, como salienta (ROIZ,2008, p.184).

Trazer para sala de aula entrevistas orais com os familiares mais velhos e tentar fazer uma relação entre a vivência de seus parentes e o conteúdo presente nos livros didáticos para que os alunos possam se identificar como parte de um todo; propor uma visita ao centro da cidade onde a escola está localizada e tentar fazer com que os próprios alunos contem a história dela; mostrar para os alunos que as músicas de rap ouvidas por eles podem ser comparadas com canções consagradas de artistas da MPB, no ponto em que se comunicam com a sociedade sobre os problemas que a circundam num determinado momento, são propostas atuais e contribuem para identidade, aproximação e criticidade do alunado.

Não são necessários grandes shows pedagógicos para que se aguce a curiosidade ou questionamento do discente. Fundamental é que as provocações sejam intencionais, afetivas e contextualizadas com objetivos capazes de fazer o aluno olhar o mundo e perceber que a história é ele, o que passou, e o que está ao seu entorno agora.

Se como educador queremos compreender a História dos alunos que vivem nos morros e favelas, nos subúrbios ou no sertão temos que considerar a dinâmica social, política e cultural do lugar e das pessoas.

É evidente que percebemos que os debates em torno das ciências humanas transpondo aqui no ensino de História terminam permanentemente ressaltando problemas dos quais já conhecemos. O conteudismo da memorização e dos ídolos, os parâmetros curriculares que apontam o que deve ou não ser ensinado; projetos de lei, como o nº 1/2015, de autoria da deputada distrital Sandra Faraj denominado “Escola sem Partido”, no Distrito Federal, que proíbe a doutrinação política nas salas de aula; a diretoria da escola que exige que o professor não se posicione; o professor que em meio a tantas metodologias atuais permanece na aula expositiva não dialogada ou usa o livro didático como bíblia; os alunos que não querem prestar atenção; a pouca carga horária de História, o ENEM, o número esmagador dos discentes que querem ser engenheiros em relação aos que querem ser filósofos, historiadores ou sociólogos.

O problema do ensino é proveniente do modelo contemporâneo social que traz consigo uma carga do que se tornou primordial e do que é válido ser colocado em segundo plano. Ser professor de História ou educador que pense em emancipar mentes é se questionar sobre o que é importante na vida e o que faz dele ter escolhido a profissão, como também reconhecer que apesar das adversidades citadas muito já se modificou.

Se o ensino de História incomoda tanto, é por que ele fala e faz com que pessoas possam enxergar ao redor com seus próprios olhos. Mentes autônomas mudam o mundo.

Conclusão

Somos ensinados que milhares de pessoas morreram em grandes guerras, sabemos a data, o lugar do acontecido. Mas será que nos questionamos quem eram essas pessoas, qual o sentimento delas ao deixar seus familiares, se realmente elas queriam estar ali. Não mais nos chocam o ódio e a violência contanto que eles não nos atinjam. A razão que ensina a organizar esse texto é a mesma que dita conceitos e verdades a serem seguidas na proclamação de que “somos todos potencialmente iguais” para que assim ela, a soberana, atinja seus fins.

A perda da sensibilidade nos torna seres humanos angustiados, e pior. Por vezes essa angústia é tão naturalizada a ponto de não levantarmos questionamentos do tipo o que nos move, se o consumo é mesmo a melhor maneira de satisfação, se o que a televisão diz é a versão mais próxima do acontecido, se estamos felizes por passar horas no trânsito em direção a um emprego que não gostamos. Questionamentos como estes nos levam a pensar na dinâmica que a sociedade se deixou impregnar. O progresso que nos distancia de nós mesmos, que nos torna rivais do outro, e que nos cega.

Por fim, alegamos que paradigmas se quebram quando um grande número de pessoas nota e se conflita. Levar assuntos como este para sala de aula, para roda de amigos, para debates universitários, aliados ao que o saber histórico pode proporcionar é uma forma de tentarmos quebrar paradigmas e tratar humanos como humanos.

Referências

BURKE,P. Abertura: “a Nova História, seu passado e seu futuro”. In: A Escrita da História – Novas Perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 1992. pp. 7-37.
FARIA FILHO, L. M. Escolarização, culturas e práticas escolares no Brasil: reflexões de alguns pressupostos e desafios. Belo Horizonte: Fae/UFMG,2005.
HORKHEIMER, M. Teoria tradicional e teoria crítica. In: Textos escolhidos: Max Horkheimer, Theodor W Adorno. Tradução Zelijko Loparié (et. al.). 5. ed. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
LAVILLE, Christian. Guerra de narrativas: debates e ilusões em torno do ensino da História. São Paulo: Revista Brasileira de História, v. 19, n. 38, 1999, pp. 125-138
NADAI, Elza. O ensino de História: trajetória e perspectiva. Revista Brasileira de História, v. 13, n. 25/26, São Paulo, 1993.
ROIZ, Diogo da Silva. A Nova História Cultural. Questões e debates. In: Pensamento Plural. Pelotas: Jan/Jun. 2008, p. 181-186


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